Entrevista NEELIC Núcleo de Estudos e Experimentação da Linguagem Cênica - Transcrição

Participantes:


Desirée Pessoa

Adriano Roman

Entrevista Desirée

Giancarlo: Pode começar por aí mesmo, como é que surge, os primórdios do grupo. A gente pode falar também hoje quantos vocês são, que ano que começaram é essa ideia.
Desirée: Nós somos quatro pessoas. Nós começamos em 2003 e o que eu estava te falando é que a gente começou a partir de uma ideia, de um tipo de trabalho sobre o qual a gente não sabia o que queria fazer, mas sabia o que a gente não queria fazer. Isso era um norte: a gente queria poder se relacionar com liberdade dentro das diferenças. E aí aconteceu que as pessoas que estavam comigo naquele primeiro momento não conseguiram levar a cabo a experiência por conta da dificuldade com o espaço. Como o espaço estava muito carente de tudo, a sensação era: não tem chão, não tem eletricidade, não tem água, não tem, não tem, não tem, não tem. As pessoas precisam sobreviver, as pessoas precisam trabalhar, têm seus sonhos. E trabalhar num lugar como esse a gente sabe que pode ser bastante frustrante em muitos níveis. As pessoas foram aos poucos se envolvendo em outras coisas e eu fui aos poucos ficando sozinha. E eu tinha assinado um papel dizendo que este grupo, o Neelic, solicitava aquele espaço pra trabalhar. E essa relação com o compromisso pra mim sempre foi muito importante. E eu me perguntei o que fazer com isso. Então eu nunca esqueço do dia em que eu sentei na sala maior que a gente tem e olhei praquele espaço e me senti muito frágil e pensei: o que fazer? Eu era atriz, mas não me sentia apta a convidar um grande diretor pra me dirigir porque eu estava muito no começo, eu não era conhecida e etc. Eu não era diretora, então eu não podia me autodirigir naquele momento e aí eu pensei: vou dar uma oficina, porque eu era oficineira e estava na graduação em Licenciatura. E eu pensei: eu posso pedir um suporte da Universidade, isso é uma coisa que eu posso fazer. E aí eu comecei a dar uma oficina que no primeiro módulo teve três pessoas participando. No segundo módulo teve onze pessoas, no terceiro tinha quarenta pessoas e eu disse: olha, aqui tem alguma coisa legal acontecendo.
Então é isso: o Neelic começa como uma ideia e se torna um grupo ao longo (do tempo). Um grupo dentro do entendimento que eu tenho de grupo: um coletivo de pessoas que trabalham juntas por uma causa, cada uma com as suas particularidades. Acho que isso é bem importante, a gente não pretende ser homogêneo no jeito de ser das pessoas, dos indivíduos. A gente não tem os mesmos gostos, a gente não frequenta as mesmas festas, a gente não vai no cinema junto, tem várias coisas que a gente não tem e que são muito saudáveis pra nós, pra mantermos a diversidade. Isso é muito interessante. Então, quando a gente se junta pra trabalhar é sempre festivo. Isso é muito legal. Conflito a gente tem muito pouco, e quando a gente tem, facilmente se resolve de alguma maneira. Eu acho (eu tenho uma suspeita) que isso é resultado desses outros aspectos da nossa individualidade que a gente se permite viver. Que a gente não se sufoca, no sentido de estar junto todo o tempo das nossas vidas. Se é legal, se as pessoas dão conta de fazerem isso, acho bacana. Mas no nosso caso, não. No nosso caso, o nosso jeito tem funcionado dessa forma. E aí então de 2003 até 2007 eu fui trabalhando com as oficinas e com os espetáculos provenientes das oficinas. E em 2007 a gente fez o primeiro espetáculo do grupo, da companhia, que se chamava Clitemnestra. Era uma adaptação da Electra do Sófocles, mesclada com o conto Clitemnestra ou o crime, de uma autora francesa chamada Margueritte Yourcenar. Uma escritora linda. Muito legal. Recomendo. Nessa formação a gente tinha algumas pessoas provenientes das oficinas, entre elas o Pablo Corroche, que é um dos atores que ainda está conosco hoje, um dos integrantes do grupo. Depois disso, em 2009 entraram a Vanda Bress, que também está no grupo conosco hoje e o Adriano Roman, também pela via da nossa Escola, em turmas diferentes (eles entraram). E foram, cada um à sua maneira, demonstrando vontade de ficar, de estar junto, de participar. Então hoje essa é a nossa formação, a Vanda, o Adriano, o Pablo e eu. E como nós somos apenas em quatro, às vezes a gente trabalha com atores convidados, dependendo do espetáculo. E muitos parceiros – a gente tem o pessoal da trilha, o pessoal do figurino, por exemplo, que não integra o grupo, mas trabalha junto. O Adriano agora está se formando como iluminador, aos poucos, porque também somos jovens ainda, começamos há pouco tempo relativamente. Então temos muito pela frente.  Contratamos uma produtora de fora do grupo, a maior parte das vezes, de um tempo pra cá.


Giancarlo: Vocês não fazem a produção?
Desirée: Fazemos a Produção Executiva. Produção de Projeto a gente tentou fazer e eu acho que a gente não é bem sucedido fazendo. A gente nunca tinha ganho um projeto. Pra não dizer que nunca tinha ganho, a gente ganhou editais que não nos sustentam, que não são de financiamento de espetáculo. Teve o edital da Usina, que a gente ganhou. E ganhou na seleção natural, não conhecia o Caco (então diretor da Usina) antes, foi pelo mérito do projeto. Isso nos possibilitou montar alguns espetáculos durante o tempo que a gente esteve lá sim, mas não é um dinheiro para espetáculos, é um dinheiro que é muito pouco pra montagem de espetáculo. A gente fez espetáculos honestos (artisticamente falando), mas num tamanho muito desproporcional de espetáculo que a gente tem na nossa cabeça. E aí começamos a contratar desde o ano passado uma produtora de fora e agora ganhamos o primeiro. Sinto que começa uma nova etapa pra nós. Uma etapa mais tranquila financeiramente, mais feliz e que traz também um outra relação com o trabalho. O dinheiro ainda não começou a entrar e eu já sinto que a gente se relaciona com o trabalho de uma forma até mais esperançosa porque dez anos trabalhando sem um retorno um pouco mais avolumado de dinheiro é complicado. Tem um momento que a gente se descabela. A gente se olha e diz: - Tá, até quando? Bom, a partir do dia que acontece (a contemplação com financiamento) é mais bacana (o desenvolvimento do trabalho).
Giancarlo: Sem dúvida. Nessa coisa ali que tu estava falando que daí tu começou a fazer oficina, a pensar na coisa de fazer oficina e a partir daí a coisa se desencadeou.  Como é que tu lidava com isso? Como é que era a ocupação de vocês ali? Era periódica, era duas vezes por semana, era todos os dias, como isso se dava na prática?
Desirée: A gente tem um hábito de, no mínimo três a quatro vezes por semana estar presente de alguma forma e em algum momento do dia. Fora isso, a gente tem um convidado regular, que é o Guilherme Sanches (ele é conhecido como Feijão, na área da percussão em Porto Alegre), que ele deixa os materiais dele lá, junto com os nossos. Ele trabalha muito com percussão com sucata, por isso que eu estou falando dos materiais. E ele também, na área da música, já foi contemplado com projetos e etc. Ele trabalha com os processos de criação de shows e também leva os shows para escolas públicas, ele tem uma abordagem social bem bacana. Ele também usa pra fazer os ensaios dele lá, ou criação. Criação tanto de composição quanto de novos instrumentos, porque a pesquisa dele também é de ir criando novos instrumentos, novas possibilidades sonoras a partir de todo tipo de sucata. E ele usa o espaço pra isso, em horários alternados com os nossos.
Giancarlo: Apesar de eu saber como é que é, mas eu queria que tu falasses. Lá tem comodato, não tem comodato, paga aluguel, não paga aluguel, que isso também vai fazer parte desse desenvolvimento lá do registro de cada grupo. Então eu queria que tu contasses um pouco isso também, como é que é essa relação lá com o governo, no caso.
Desirée: Não paga aluguel, mas também não se recebe dez centavos pra trabalhar. Então ao mesmo tempo o             que a gente não tem uma despesa maior como aluguel, existe toda a despesa de uso diário do espaço, ou seja, desde o papel higiênico até um fio elétrico ou uma parede que cai, são coisas com as quais a gente tem que ir dando conta conforme elas acontecem porque as arquiteturas têm vida.  E aquele espaço é uma vida muito antiga. Ele fala com a gente todo o tempo. Então se cai uma chuva mais forte e despenca uma telha, eu tenho que escutar que isso aconteceu e se eu estou lá eu tenho que poder resolver isso.  E aí entra o valor (que é financeiro também) e valor de tempo, o valor de envolvimento, etc. O comodato nós não temos ainda. Agora foi assinado o termo entre as secretarias (entre a Secretaria da Cultura e a Secretaria da Saúde) finalmente, nesse mês que passou, dia 27 de março, dia do Teatro (que inclusive foi muito feliz pra nós), mas falta ainda a Cultura assinar com os grupos. Com estes grupos, que são os grupos que estão lá há quatorze anos – o nosso fazendo onze, mas desde o primeiro grupo são quatorze anos de trabalho contínuo, que merecem essa celebração.
Giancarlo: Ações que vocês executam lá dentro, tendo o espaço. Tu falaste em oficina, o que mais?
Desirée: Depósito de materiais, confecção de cenário e figurino, ensaios, pesquisas. A gente trabalha muito com pesquisas experimentais, que às vezes geram espetáculos, às vezes não. Saraus livres pra agregar novas pessoas e esse ano a gente vai voltar com um projeto que a gente tinha em 2007 que a gente parou porque, justamente, com as tensões de uso do espaço por causa das gestões políticas, a gente não pôde dar continuidade. Agora vai voltar, que é com filmes. Filmes clássicos do cinema. Filmes mais debates. A gente ainda está pensando no nome disso, se vai ser Cine Neelic, alguma coisa assim, Dia do Filme no Neelic. Porque como Cine remete a cinema e a gente não tem uma estrutura de cinema, enfim... mas a gente tem um projetor multimídia, então o objetivo é tentar retornar a essa ideia de agregar pessoas convidadas dos nossos integrantes e dos nossos alunos pra participarem também.
Giancarlo: Aproveitar uma coisa que tu falou, um pouquinho antes ali, que as paredes tem história, tu acha que esse espaço influencia na criação de vocês? Tu acha que tem alguma influência direta na montagem dos espetáculos ou não? Como é que isso funciona pra vocês?
Desirée: Sem dúvida, sem dúvida tem, mas não só. A primeira peça que a gente montou a gente ainda podia apresentar lá. Foi num período de tempo em que a relação ainda estava mais amena. Então ela (a peça) foi toda feita pensando na arquitetura das salas que a gente usa lá. As cenas foram criadas, as movimentações, de acordo com o espaço. Inclusive tinha uma itinerância, de passar o público de uma sala pra outra, terminar no pátio e etc. Imediatamente ao fim da experiência desse espetáculo, das temporadas de apresentação, foi quando os grupos todos foram impedidos de apresentar lá. Então a gente passou a criar nas salas da Usina do Gasômetro e isso foi muito definidor pra estética dos espetáculos. Mas ao mesmo tempo a gente ensaiava no São Pedro, então a gente queria que as temáticas de alguma forma se conectassem com aquilo que a gente sente daquele espaço. Assim, por exemplo, o espetáculo que a gente fez imediatamente em seguida foi O Retrato, que é inspirado n’O Retrato de Dorian Gray, do Oscar Wilde, que falava da questão do duplo. O mote central é a vaidade, mas pra nós tem muito a ver com a questão do duplo. Ele cria um duplo através dessa relação dele com o espelho, da loucura. Quando ele se enxerga finalmente nesse espelho isso o transtorna a tal ponto que ele não sabe o que fazer com ele mesmo. Então são temas que pra nós interessava trazer à cena de alguma forma, mas lamentavelmente pra levar pra outros teatros, sem poder apresentar no próprio espaço. Depois disso a gente cria Sem Açúcar e A Serpente, que foram num período bem frágil da relação com o espaço do São Pedro. Mas a gente estava com muita segurança no trabalho pelo uso do espaço da Usina. Quando o São Pedro estava nos negando, a Usina estava nos acolhendo. Isso foi um marco importante pra nós também, como sobrevivência de grupo. São espetáculos que foram (estes dois) criados para o espaço que a gente tinha na Usina, que era uma sala pequena, 42 m², enfim, e que diziam disso. Diziam desse momento de um tipo de uso no São Pedro do qual a gente não se sentia confortável pra criar. Quando terminou essa experiência (foram dois espetáculos que a gente criou simultaneamente), a gente fez as temporadas e tal, e então a gente sentiu muita falta do diálogo com o Hospital. E aí a gente viu que precisava voltar a ter uma poética atravessada por aquele lugar e aí a gente criou a Trilogia Sensível, que é uma trilogia pra tratar das questões do feminino contemporâneo, a partir de uma visão particular que eu tenho, que o grupo acolheu, de que a gente tem que começar a pensar o feminino hoje de uma outra forma que não é o feminismo dos anos 80, esse feminismo mais fechado, mais duro. Porque hoje inclusive homens se mobilizam (e de verdade) pelas causas da mulher. Homens podem ser legais, então por que a gente vai só negar, negar, negar o masculino? Qual é a faceta do masculino que a gente nega? E qual é a faceta que a gente consegue se relacionar como mulher? Essa busca veio muito a partir da necessidade de falar de mulheres reais, que estão aí na vida, trabalhando e fazendo faculdade no horário inverso, tendo filhos ou não, cuidando desses filhos, se relacionando entre mulheres, se relacionando entre homens, se relacionando nas trans-relações, enfim. Quem é essa mulher de hoje? Esse era o mote. Os nomes das peças são Portas do Invisível, a primeira, Hallucination, a segunda e Olhar de Frente. Porta do Invisível é a partir de cinco personagens femininas do teatro e da literatura, Hallucination foi sobre a obra da Virgínia Woolf, que é um marco na literatura moderna, muito emblemática nessa questão do feminismo e o Olhar de Frente é sobre morte e resistência do gênero feminino. As várias mortes que a gente encara todos os dias, as transformações que a gente vai sofrendo antes da morte final, da grande morte e a necessidade de continuar vivo, que é uma necessidade humana. E sobre o fato de que a mulher, e isso é uma coisa em que a gente acredita, (se homem tem força física) a mulher tem resistência. Os homens, generalizando as tipologias para poder refletir um pouco, os homens têm a força física e as mulheres têm a resistência. Eu gosto de pensar nessa ideia. Então quando eu falo de mortes e de lutos, eu penso mais em mulheres do que em homens.
Giancarlo: Fala um pouco da relação que eu estou chamando de Guerra Fria com os governos. Como é que isso se dá pra vocês do Neelic? Como é que isso se deu, conta um pouco. Tu falaste de certa forma, que teve uma época que tu não pôde trabalhar lá dentro e tal, mas eu queria que tu relatasse um pouco isso. Tu falaste também que tu assinou um termo dizendo que tu te comprometia em ocupar aquele espaço. Como é que isso aconteceu e tem acontecido?
Desirée: Isso é terrível, isso é terrível. Eu faço hoje um doutorado em Ética (nas Artes Cênicas), que é um tema que eu já pesquisava no Mestrado e que está absolutamente relacionado com isso: o valor da palavra, o valor do que se faz com o uso do dinheiro público – o que o nosso país está fazendo com isso, o que essas instituições, o que essas instâncias públicas estão fazendo com isso? E sentir isso na pele é muito desgastante, muito complicado. As vezes em que a gente se olhou no nosso grupo com uma total perda de sentido não foram poucas. As vezes em que a gente se reuniu pra conversar, sem saber como continuar, sem saber o que dizer uns pros outros, não foram poucas e não foram fáceis. Acho que é um país de merda pra quem faz arte e acho que a gente pode falar isso com muita propriedade (os grupos que trabalham lá), porque a gente não pede dinheiro, a gente não pede um espaço maravilhoso, a gente está pedindo um espaço que estava jogado quando a gente chegou lá e que a gente pode dar e dá um uso muito melhor pra ele do que deixar jogado. E há os políticos que não conseguem enxergar isso e até agora, até o mês passado, justamente, semanas atrás, quando se assinou, foram políticos que não conseguiram enxergar isso (que impediram o avanço do projeto). E aí não conseguir enxergar isso é a coisa mais leve que se pode dizer sobre isso. É uma falta de sensibilidade absurda. Na minha opinião é uma falta de inteligência, é uma falta de caráter, mas é o retrato do nosso país sendo visto de uma forma muito concreta no nosso café da manhã.  E a gente tem que conseguir lidar com isso. Então há a decisão, por isso que eu te falo em ética, porque é uma decisão ética também, olhar pra isso, saber que é assim, respirar fundo e dizer “vamos continuar”, sabendo que muitos não conseguiriam continuar, sabendo inclusive o que eu estava te falando dos primórdios da pré-história do grupo, das primeiras pessoas que eu convidei e não conseguiram continuar. As pessoas que ficaram e que foram aos poucos se somando aos trabalhos são pessoas “garrudas”.  Pessoas que eu admiro, que eu respeito, que eu sei que eu posso contar, sei que se cair uma telha às 4h da manhã eu posso pegar o telefone às 4h da manhã, ligar para as pessoas e dizer: vamos lá resolver, porque a gente tem que resolver. E não é pra qualquer pessoa que tu consegues levantar esse telefone.
Então está tudo isso relacionado. Tem uma parte que é essa parte institucional, que a gente tem que ir para as reuniões, a gente tem que criar as estratégias, a gente tem que pensar nessas abordagens e a gente é artista.  Eu não sou uma pessoa da política. Eu sou uma pessoa política, na medida em que eu tenho um posicionamento político frente ao mundo, mas não sou uma pessoa que tenho um berço num partido político. Então não tenho essa...
Giancarlo: Político partidária.
Desirée: É. Eu não tenho esse traquejo de lidar com essas pessoas que têm, na minha opinião, um caráter duvidoso. Então foi um aprendizado. A gente teve que aprender isso também.  Aprender esse linguajar. Aprender. E foi dolorido, porque se tu és artista tu não tens uma disposição pra isso, inicial. Tu queres fazer outras coisas, tu não queres fazer isso, esta parte da política. Pelo menos no nosso caso. E foi sempre muito desgastante, muitas vezes muito frustrante ao ponto de a gente sentir, na experiência mesmo, a diferença concreta de estar numa reunião de manhã e um ensaio de tarde ou vice-versa e aquele ambiente afetar diretamente na criação artística. Eu me lembro de terminarem as reuniões que eu tinha que ir de tarde, e que eu estava vindo de um ensaio, no qual, como a gente trabalha com experimentação (então a gente usa inclusive os nossos corpos pra experimentar, as nossas emoções, as nossas subjetividades), lembro de chegar numa reunião com toda essa bagagem emocional aflorada e ter vontade de sentar no meio da reunião e chorar. Completamente descabido, porque aquele não é o lugar do sensível, mas eu sou artista, eu tenho que ter o direito de estar no momento do sensível, mas eu não tenho como, porque eu tenho uma agenda. E eu tenho que cumprir essa agenda porque tem outros quatro grupos me esperando, e eu não posso deixar essas pessoas na mão. Isso muitas vezes foi muito complicado. Pra nós esse agenciamento não é só de agenda, porque às vezes as reuniões são marcadas no horário que tu já tinhas um compromisso e aí tu abdicas de um trabalho que te daria grana, uma grana imediata, pra ir numa reunião. Tem toda uma parte que é concreta que eu nem estou falando ainda, mas tem essa parte que é subjetiva, que é emocional que é complicadíssima. Não sei se algum dos entrevistados te falou sobre isso, mas pra nós pega muito. Talvez por essa questão de trabalhar com experimentação, com pesquisa de linguagem. Pra nós isso é muito caro. O momento de criação é um momento muito embrionário, muito delicado, muito sensível. Sair disso pra uma reunião é horrível.  E vice-versa. Chegar de uma reunião com essa carga de energia da reunião. Às vezes a gente sai puto da cara pelo que a gente ouviu, e com a incapacidade de transformar e com as mãos atadas e a impossibilidade de fazer qualquer coisa. E aí ter que se livrar disso pra criar, muitas vezes não deu. Muitas vezes o ensaio foi, não digo em vão, mas o que tu terias três horas pra produzir vira duas horas e meia tu te limpando dessa experiência que tu acabaste de viver e trinta minutos de criação. Bom, e aí se pensarmos em termos de maquinaria de produção, tempo é dinheiro, criação é dinheiro também e eu estou ali perdendo duas horas e meia de dinheiro. Duas horas e meia de criação sensível, então, tem o plano do sensível, que é a criação artística e a parte prática.
Te respondendo em uma palavra, acho que a relação é horrível, acho que pra mim essa é a parte mais complicada.
Giancarlo: Tu acha que em algum momento vocês identificaram bah, esse lugar é nosso. Esse lugar, se apropriaram dele e entenderam que aquele lugar era de vocês? Tu acha que isso já aconteceu ou não aconteceu ainda? Tu consegue identificar quando isso aconteceu?
Desirée: Sim, consigo. Tem três momentos que isso aconteceu, bem resumidamente, de formas diferentes. O primeiro foi logo na primeira turma da oficina. Aquela turma que eu te falei que eram três pessoas, eram três meninas. E elas sempre chegavam e me viam varrendo a sala pra fazer a aula, porque chegavam antes do horário. E aí um dia elas mesmas disseram. Uma deu a ideia e as outras compraram imediatamente. Gente, o lugar é tão grande, vamos fazer um mutirão nós todas juntas? E isso me fez ver que aquele espaço era coletivo, e era um coletivo nosso. E aí a ideia de mutirão ficou. E ficou para as pessoas que vieram depois e hoje a gente faz sempre os mutirões. A gente tem uma relação com os mutirões e com o café. A gente tem uma cafeteira que pra nós é muito importante. A gente tem uma cozinha, tem uma geladeira, um fogão e isso é bem importante pra nós também. Tem uma coisa de reunião afetiva nessa relação com a comida. E os dias de mutirão são uns dias muito legais entre nós. Não importa se o mutirão é pra faxina, se ele é pra seleção de figurinos. Não importa qual o mote do mutirão mas tem sempre um caráter de manutenção. Então aquele foi um momento em que a partir dali, cada vez mais, mesmo as novas pessoas que iam entrando nas novas turmas de oficina, tem sempre essa relação: “Ah, essa é a nossa sala”. Essa é a sala da nossa turma. Aqui eu posso deixar a minha bolsa, eu sei que ninguém vai pegar. Tem uma relação afetiva e de propriedade com um espaço que vem a partir desse trânsito das oficinas, que mesmo que seja um trânsito flutuante, as pessoas vão pra fazer um curso que vai durar alguns meses, ainda assim é uma apropriação flutuante que dura a intensidade daquele momento, mas que é um jeito de apropriação que é muito interessante. Então aí teve esse marco.
Tem um outro marco que foi o momento do primeiro espetáculo do grupo, que eu te falei que foi em 2007.  Foi quando a gente pensou o espaço pela primeira vez como uma casa de teatro, como uma casa de espetáculo. Então a gente separou a arquitetura interna como “aqui vai ser o camarim, aqui vai ser o guarda-roupa, aqui vai ser o hall de entrada do público, aqui vai ser a sala principal...” e o respeito e o zelo que as pessoas tinham pela não-confusão desses espaços, por deixar o figurino onde fica o figurino, por se maquiar onde é o espaço de se maquiar foi uma coisa que aconteceu naturalmente e as pessoas passaram a chegar mais cedo pra ver se tá tudo limpo e organizado, muitas vezes não tinham grana pra almoçar no restaurante e levavam seu lanche de casa e chegavam mais cedo pra lanchar. Começaram a acontecer outras relações, as quais a gente mantém até hoje, e foi naquele momento. Relações mais de rotina do uso do espaço como um uso “meu”, que é um pouco isso que tu estás me perguntando. Às vezes até uma soneca, alguém está muito cansado do trabalho, chegou ali depois do almoço, o próximo ensaio só vai ser às 14h, bom, junta os colchonetes e “tira uma sonequinha”. Ou tem um livro pra ler, um trabalho de faculdade pra fazer. Alguma coisa, aproveitando esse tempo, esse espaço pra isso. E começou também uma atenção especial com essa questão do envolvimento político, um movimento com os governos e o peso dessa possibilidade de como isso possa não ferir a parte artística. Foi aí que a gente começou a pensar nisso. E um terceiro momento é esse momento que a gente está vivendo agora, nesse instante, que começou concretamente em fevereiro (agora de 2014), mas para o qual a gente se preparou desde 2013, que é o momento que eu saí pra fazer doutorado. Isso foi uma coisa muito acordada entre nós, isso foi muito conversado, porque como eu dirijo, tem alguns aspectos do trabalho que são centralizados em mim. Isso aconteceu. Não foi uma coisa que eu escolhi, que eles escolheram, ao mesmo tempo todos escolhemos porque as coisas que acontecem são escolhas veladas. E aí a gente tinha duas possibilidades: parar o trabalho, naquela visão clássica que o diretor não está, ou seguir o trabalho, numa direção mais anárquica em que o trabalho é nosso e nós seguimos. E eu deixei o pessoal muito à vontade pra decidir isso. Eu disse inclusive que eu não participaria da decisão final, que eu ia dar a minha opinião, que era: se eles quisessem tocar o trabalho, eu ficaria feliz e daria todo o suporte necessário inclusive à distância, mas que isso não seria determinante. E eles decidiram tocar o trabalho e isso foi muito bonito, foi muito comovente porque significa suprir as minhas funções. E aí eu me sinto acolhida. Então eles se sentiram acolhidos de saber que eu estou vindo sem abandoná-los, sem abandonar o nosso trabalho e eu me sinto acolhida de saber que eles vão dar o suporte necessário para que o trabalho continue acontecendo. É claro que não é um período de tempo longo, são dois semestres, mas fico pensando que tem aí uma questão de vida própria, de apropriação do espaço. A ideia que a gente vem desenvolvendo de uso daquele espaço que independe de quem são as pessoas. É quase como se a ideia hoje tivesse vida própria. E de alguma forma a ideia, estou falando de um jeito muito subjetivo, não sei se eu estou sendo clara, é como se a ideia transcendesse as pessoas e a ideia conseguisse se relacionar com o espaço. E isso pra mim é o mais bonito, porque pra mim isso tem a ver com arte. Não tanto quanto o ego daquele sujeito que está criando, mas esse lugar de ideia, de conceito onde a gente quer chegar. E aí isso está implicado diretamente com o espaço, completamente, nesse caso. Então nós somos sempre muito honestos uns com os outros, isso é um valor que a gente tem. Uma tentativa disso (a busca disso com maior honestidade possível) e a gente consegue naquele momento fazer o sujeito se organizar. Então nós somos quatro, como eu tinha te falado, e o Pablo falou, por exemplo: “eu não consigo dar conta nesse momento porque estou envolvido com a minha seleção de mestrado”. Ele tem também projetos individuais na vida e não é justo a gente impedir só porque a gente é um grupo, né? Quando ele falou isso, ele também deu chance pros outros dois, que são a Vanda e o Adriano, se posicionarem como “posso” ou “não posso”. E imediatamente a Vanda e o Adriano abraçaram (a causa de manter o grupo ativo) e não só isso, mas eles começaram a dividir as tarefas, já, de quem ia fazer o que e qual seria o envolvimento do Pablo, que ia ser menor, a pedido do próprio Pablo, mas que não ia deixar de existir, porque ele é um integrante. Como é que a gente consegue pensar em tudo isso? Aí, voltando àquela questão das diversidades, das particularidades, como é que a gente consegue agir, cada um no seu momento de vida, sem que isso (cada escolha individual) desconfigure um grupo. Porque o grupo é o fato de estarmos todos juntos tocando um trabalho (pra frente).
Então a estratégia de ação pra isso foi que durante o ano 2013 a gente criou dois espetáculos: um que é entre eles e sem mim e um que é um solo meu. Se eu tiver a oportunidade de apresentar o meu solo onde eu estiver, eu apresento. Enquanto isso, eles ficam trabalhando esse espetáculo que eles têm lá e tocando as turmas das oficinas e tocando a parte política. As nossas oficinas hoje configuram uma escola, a gente tem um número de cursos bastante volumoso, então há a Escola de Teatro do Grupo Neelic. A divisão mais evidente é que a Vanda está mais responsável pelas questões da Escola e da Associação e o Adriano está mais responsável pelas questões dos projetos grandes de edital e da parte política na relação com os governos e com os demais grupos.
Giancarlo: Ações futuras que tu imaginas, que vocês planejam, que vocês pensam. Tem alguma coisa nesse sentido já pensada, imaginada? Ou não?
Desirée: A gente quer agora ficar trabalhando nesses espetáculos que temos e em 2015 conceber um espetáculo novo a partir de uma linha que a gente está, de uma linha poética que a gente está começando a entender melhor no nosso trabalho, que é de teatro performativo. Isso é uma coisa um pouco nova pra nós, mas nem tanto, a gente vem tocando nisso um pouco e tal. Agora a gente vai verticalizar. Tem uma autora que se chama Josette Féral, que ela vai chamar de Teatro do Real. Também um dos conceitos que trabalha um pouco isso é esse encontro entre o teatro e a performance na cena, isso tem nos interessado. Mas, paralelamente a isso, a gente também precisa às vezes de um respiro pra um outro tipo de teatro.  Um tipo de teatro que traga um público mais numeroso, sem que abandone a nossa pesquisa poética. Nesse momento a gente está com um espetáculo que se chama Os gringos à beira de um ataque de nervos, que é uma comédia que a gente criou a partir de um texto do Shakespeare de comédia e o projeto que a gente ganhou tem a ver com isso. E aí a gente faz uma pesquisa sobre a latinidade, das influências latinas em quem a gente é, em quem somos nós, gaúchos. Então pesquisamos o flamenco, as danças ciganas, esse sangue quente, o fogo da colonização italiana com a realidade de Porto Alegre também. Tudo isso é o que nos faz, o que nos faz (culturalmente), pensado pra essa cena cômica. Esses espetáculos dessa linha mais cômica também têm a ver um pouco com essa dificuldade de lidar com uma forma de trabalhar que às vezes pode ser muito dura. Trabalhar num espaço onde tu estás dizendo pra um governo que tu estás fazendo uma coisa muito legal e esse governo não te quer, pode ser muito duro. Então a gente tem que encontrar momentos felizes, inclusive dentro do trabalho. E é aí que surge essa outra linguagem poética. Então a gente tem essa linha de pesquisa mais experimental pra um tipo de cena mais, eu não sei se inovadora não é uma palavra boba, mas assim, que provoque mais rupturas na gente mesmo, em quem assiste, enfim, que aproxima o teatro da performance e essa outra linha se desenvolvendo por uma necessidade pessoal nossa, de poder ir pro ensaio e fazer isso de um jeito mais feliz e sem tanta dor e sem tanto peso. Então, como a gente fez a Trilogia Sensível e ela foi dessa linha mais vertical, mais performativa, aí a gente vai passar esse ano de 2014 trabalhando o espetáculo de comédia que eu estava te falando que vai se chamar As Alegres Latinas de POA. Em 2015 a gente volta a criar um espetáculo da linha performativa, e aí a gente vai voltar a relacionar com o espaço lá. Não sei te dizer “como” ainda, mas vai ter a ver com fotografias, vai ter a ver com imagens, isso é uma coisa que a gente já pensou inicialmente. O mote vão ser as imagens. Aquele lugar, o que eu enxergo dele, ele fala muito através de imagens. E também não só os ambientes, não só a pessoa que entra lá, mas uma pessoa que abre uma foto de lá no Facebook, por exemplo. Até mesmo nesse nível mais raso da relação, a pessoa olha e já sente algo, então são imagens que falam muito. Esse vai ser um mote. Não sei te dizer o que mais porque a gente não terminou de pensar ainda, mas esse é um dos planos. E projetos futuros são trabalhar muito nessas duas frentes, agora que a gente gostou, a gente gostou muito dessa pesquisa cômica com a questão das latinidades, a gente achou que tem aí coisas boas. Pra nós e pro público. Então a gente vai manter essa dupla frente de trabalho e tentar manter as oficinas dentro de um tempo possível e que não se perca a qualidade, porque como foi o nosso trabalho primeiro, essa vertente das oficinas, de forma nenhuma a gente quer prostituir isso, de modo algum a gente quer que isso perca a qualidade que sempre teve. Isso é um valor muito caro pra nós. A gente não quer fazer espetáculo e dar o curso nas horas vagas. Os cursos têm uma importância capital pra nós. E então a gente só vai, agora que a agenda com espetáculos vai ficar um pouco mais apertada por causa dos editais e temporadas que vão ser um pouco maiores a partir de agora, a gente vai ter menos tempo pros cursos, mas a gente não vai manter o mesmo número de cursos pra poder segurar a qualidade. Mesmo que tenham menos cursos, mas com a mesma qualidade ou melhor. A gente tem toda uma questão de pesquisa também com os cursos. A gente faz reuniões de professores, muito sérias, reuniões trimestrais, semestrais, de como é que o curso está andando, como é que a gente vê... a gente vê mudanças no público-alvo de tempos em tempos. A gente vê mudanças no comportamento das pessoas e a gente procura ajustar as metodologias muitas vezes do mesmo curso e às vezes criando cursos novos pra que o trabalho continue se desenvolvendo da melhor forma possível. E estão nos nossos planos viagens, não sei quando, não sei como, não sei com qual espetáculo, mas se eu pudesse pensar o que te dizer pros próximos dez anos é mais ou menos isso, esse tripé: criação de espetáculos dentro dessas duas linhas, viagens e oficinas, coabitando sem que um consuma o outro. Acho que esse é o principal.
Giancarlo: eu queria que tu falasse também um pouquinho, apesar de já ter falado no meio da conversa toda essa ocupação. Vocês tão num espaço público, que até então estava ocioso. Como é que isso bate no grupo? Tem um ação política que tá sendo feita, querendo ou não, vocês tão ocupando um espaço público e trazendo arte pra esse espaço. Tu acha que isso é importante, ou não é. Pode ser exemplo ou não pode. Como é que isso bate pra vocês? Essa relação mesmo dessa ocupação.
Desirée: Pra nós é uma honra poder pensar que a gente é parte disso. A gente tem muita alegria, tem essa parte que é da relação (que a gente estava falando antes) com os governos que é uma parte bem tortuosa, mas enquanto causa, que eu acho que é isso que tu estás perguntando, enquanto ação política de sujeitos políticos no mundo se relacionando, é genial pensar nisso. É lindo, é comovente. E a gente é muito feliz e a gente fica irritado quando alguém não enxerga o valor que isso tem. Mesmo, mesmo, assim. A gente fica, quando alguém faz aquela careta assim: “ai, como é que vocês conseguem trabalhar naquele lugar”. Nossa! Até saio de perto, porque se a pessoa não entende, ela não entendeu nada da vida. Ela não entendeu porque que ela está aqui, não entendeu a importância, ela não entendeu o país que ela mora, ela não entendeu a cidade que ela mora, ela não entendeu esse edifício dentro da cidade. Esse edifício é mitológico na nossa cidade. Ele é um prédio enorme de dois séculos atrás, num terreno de seis hectares super perto do centro da cidade. Ele é extremamente emblemático, uma arquitetura linda. E se, com tudo isso a pessoa já começou não entendendo, então não tem o que tu digas pra ela (que ela vá entender), sabe? Dá uma desesperança. Então pra nós bate de um jeito muito diferente. Só entrar naquele lugar e saber que a gente vai polarizar esse lugar de abandono, esse lugar de dor, esse lugar de sofrimento (e transformá-lo) em um lugar de alegria, de cores, de criação, é uma honra poder pensar isso. É uma honra poder pensar que a gente faz parte, um pouquinho, desse movimento. Que a gente é uma migalha junto com as outras migalhas, que todos nós, cada um integrante do seu coletivo, somando esses cinco coletivos, estamos fazendo isso. É muito prazeroso. Acho que a palavra é essa. É honra. É muito honrado pensar isso porque o abandono é a força do recalque, ele é a força do ressentimento. E aquele lugar é um lugar de abandono, e de dor. É um lugar onde são depositadas pessoas que são objetificadas, que são marginalizadas pelos seus familiares em condições que a gente não deve julgar e nem julga, porque a gente não sabe a realidade de cada um, mas de fato é o que acontece. De uma forma concreta, sem julgamento, mas com uma avaliação.  É isso o que acontece. E a gente ter a oportunidade de polarizar esse mesmo lugar para a criação, que é uma força de ação, é uma força ativa, é uma força positiva. Positiva não é a melhor palavra. Uma força afirmativa. É muito bacana pensar isso. É forte.
Faltou falar, dos espetáculos do grupo, dois que a gente criou em 2010, 2011. 2010 Primeiro Amor, que foi a partir da minha pesquisa de Mestrado. Também há esse caráter do grupo: o grupo acolhe as suas pesquisas acadêmicas. Eu estava falando do Pablo. O Pablo está no momento de fazer Mestrado e a gente acolhe isso. A Vanda é graduanda e a gente também lida com isso. E (o outro espetáculo) A Noiva do Caí, que foi um espetáculo que a gente fez nos barcos da Usina do Gasômetro, que também são parte desse momento de Guerra Fria que tu estava falando, que a gente viveu enquanto se dividia tendo que ir em reuniões e a gente não podia apresentar no São Pedro, mas a gente não queria apresentar em teatros convencionais então (nos perguntamos) “como é que a gente faz isso?” O nosso uso da Usina tem a ver com o espaço alternativo, mas daqui a pouco o que era alternativo já virou muito confortável também.  Então (a pergunta foi) “como sair de um alternativo pra outro alternativo?”. Esse espetáculo nos barcos foi um pouco uma tentativa disso também. A gente tem essa linguagem poética pra uma alternatividade também com o espaço. E às vezes não, às vezes a gente apresenta em teatro, palco italiano, a gente faz esse exercício de trânsito. Acho que é isso.
E se, em algum momento, tu tiveres uma brecha no texto que tu vais criar, de dar um toque pro pessoal que faz teatro achando que vão ter sempre um camarim fofo e cheirosinho esperando, que esse teatro nem sempre é o mais legal. O que eu não tenho dúvida é que isso que tu fazes é o que está transformando de fato o que é teatro. Que o teatro não é só o momento do espetáculo. O entendimento disso, da filosofia: alguns filósofos dizem que ética e estética são uma coisa só. E por isso que me interessa pesquisar a ética no teatro, porque a gente fala muito pouco nesse assunto na nossa geração (a última pessoa que falou da linhagem dos nossos ancestrais foi Grotowski, isso foi década de 60, 70). Olha o quanto o mundo mudou, a partir daí. Mudanças radicais. A gente tem que começar a olhar pra essa estética, pra essa arte que a gente faz de um ponto de vista também ético. E acho que o que a gente faz lá não é só político, porque se fosse só político, seria somente a relação desses grupos entre eles e o que está fora. Mas não, está no corpo de cada um. Tu estás aqui hoje e eu estou aqui hoje pessoalmente, individualmente encontrando espaços nas nossas agendas pra gerar essa conversa. Eu vou pra casa e eu vou compartilhar com os meus amigos de fora do grupo essa experiência que a gente está tendo aqui agora. Isso está me transformando enquanto sujeito e está transformando as minhas ações no mundo. Isso tem a ver com o fato de que eu não jogo lixo no chão, isso tem a ver diretamente com as causas que eu me envolvo, isso está diretamente relacionado com essa comemoração ridícula que se tentou do golpe de 64 e que eu fui radicalmente contra. Isso está relacionado todo o tempo, está relacionado com a forma como eu ajo na minha casa, com a minha família, com o meu marido, nos lugares que eu frequento com os meus amigos, nas instituições em que eu estou, dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde eu sempre levei a causa dos grupos, onde já no meu Mestrado eu abro na introdução dizendo que esse tema surge por causa do meu envolvimento com essa ocupação, onde aqui na UNIRIO eu estou pesquisando a ética versus grupos de teatro por causa disso. Cada disciplina que eu faço quando eu me apresento eu marco o fato de que eu venho de lá e existe essa ocupação. A partir do dia 27 de março eu pude também trazer isso pro discurso: a felicidade de estar nesse momento em que se fixou esse termo com a Secretaria, etc.

Entrevista com Adriano

Adriano: Esse é o nosso espaço, a gente tem esse corredor principal que a gente usa aqui cozinha, a gente guarda alguma coisa de cenário que a gente já tem, dos cenários que a gente tá trabalhando agora, as peças, como esse canto aqui, a gente tá com alguns cenários que a gente já tá trabalhando. A parte do fundo ali a gente usa como cozinha, material de limpeza. O resto do corredor lá no fundo a gente também alguma coisa de guardar, depósito. A gente até botou aquele painel ali na frente pra guardar madeira, as coisas que a gente usa pra construção dos cenários. A gente tem uma sala aqui no fundo que a gente chama de Sala Branca. Na verdade ela não tá mais muito branca, mas ela é a nossa sala branca, onde a gente dá oficinas, ensaia aqui. Esse é o espaço que a gente ensaia e das oficinas também. É uma sala mais aconchegante.
Giancarlo: Vocês fazem os ensaios aqui?
Adriano: Aqui e na Sala Preta.
Giancarlo: Sigamos.
Adriano: A gente tem aqui uma entrada onde fica uma salinha, a Sala Vermelha, no caso e o nosso figurino aqui. Aqui a gente guarda toda a parte de figurino. Tá uma bagunça porque a gente tá em época de apresentação, então a gente tá mexendo ali nos figurinos, procurando figurino. Aqui é onde a gente guarda o figurino, os objetos. E a nossa Sala Preta que a gente ensaia também, essa sala é um pouco maior, cabe mais gente nas oficinas. Agora a gente tá trabalhando mais nessa sala, a gente conseguiu botar o linóleo, conseguiu dar uma ajeitada nela, porque o chão é muito frio, então a gente botou linóleo pra ter um trabalho melhor, agora tá chegando o inverno. Fechamos essa porta aqui que a gente tinha por causa do inverno também, porque entra muito vento, muito frio. Então a gente fechou e fez a entrada pela Sala Vermelha, então fica mais fechadinho, fica mais agradável de trabalhar no inverno, porque no inverno é bem complicado trabalhar aqui, né.
Giancarlo: É úmido, né?
Adriano: É. E esse é o espaço que a gente trabalha hoje aqui no São Pedro. Essas duas salas de ensaio, uma de figurino e o corredor, aonde a gente faz cozinha.
Eu estou no Neelic já há oito anos... seis anos. Estou no Neelic há seis anos já. O núcleo começou em 2003 com a Desirée Pessoa, começou a partir das oficinas que ela estava dando aqui no espaço, e assim se formou o núcleo, o Neelic. Núcleo de Estudos e Experimentação da Linguagem Cênica. A partir de então a gente vem trabalhando aqui no espaço, dando oficinas, o grupo vem ensaiando peças. A gente trabalha com algumas linhas. A gente trabalha com a linha de pesquisa, onde a gente vem estudando textos literários e transformando pra teatro. A gente vem com o trabalho de “pesquisa”, que é uma turma de pesquisa que são alunos que já fizeram todos os nossos cursos e querem se manter vinculados à escola, porque o grupo mantém uma escola de teatro também, onde a gente tem cursos de formação, cursos específicos. E esses alunos que querem se manter ainda vinculados à escola têm essa pesquisa. Então, a gente orientando, eles têm umas pesquisas sobre Nelson, Artaud, eles fazem várias pesquisas dependendo do momento que eles estão. Às vezes eles querem alguma coisa que seja mais comédia, alguma coisa que seja mais drama. Eles vão buscando o que eles querem.
O espaço pra gente é muito importante porque é a nossa casa aqui, na verdade. Aqui a gente conseguiu se firmar, manter esses cursos, manter o grupo unido, trabalhando forte e a gente tendo algumas montagens. A única coisa que a gente tá um pouco triste é que a gente não pode mais apresentar aqui no espaço. E isso a gente busca teatros fora pra poder apresentar essas peças, tanto da escola quanto do grupo. De 2003 pra cá, a gente conseguiu fazer vários espetáculos aqui dentro do espaço, mas sem poder apresentar aqui. Teve um ou dois espetáculos que a gente conseguiu apresentar dentro do espaço. Foram lindos, tipo Clitemnestra, Taisho a gente apresentou aqui dentro também. Foram poucos que a gente conseguiu apresentar em 2003, finalzinho de 2003 e 2004 que a gente conseguiu apresentar aqui dentro. Os outros a gente teve que achar outros espaços. Então a gente foi também ocupar o espaço da Usina do Gasômetro no projeto Usina das Artes, que a gente tinha uma sala lá e lá sim a gente conseguia apresentar os nossos espetáculos, tanto da escola quanto do grupo. Sempre mantendo aqui como sala de ensaio, guardar alguns objetos cênicos, cenários, mas sempre mantendo aqui pra ensaiar e dar oficinas e na Usina do Gasômetro pra gente poder apresentar. Eu acho que agora a gente tá caminhando pra um momento bacana, que a gente vai conseguir se estabilizar realmente. Não só o Neelic como todos os grupos aqui dentro do Hospital São Pedro. E eu acho que a gente tá caminhando pra um momento bacana. Não tem como prever nada ainda muito adiante, mas eu acho que a gente tá caminhando pra esse momento e que a gente vai poder se firmar aqui dentro, apresentar, fazer apresentações aqui dentro. E isso nos deixa muito empolgados e muito felizes.
Giancarlo: Tu achas que o espaço, tu falou da importância do espaço pra vocês, que desde 2003 que vocês vem aqui dentro...
Adriano: Isso, que a gente vem trabalhando.
Giancarlo: Tu achas que de alguma forma o espaço influencia nas montagens, nas criações de vocês ou não necessariamente. Tu achas que esse ambiente do Hospital ou as paredes e tal. Eu vi que vocês coloriram o espaço de vocês, né. Tu achas que esse espaço acaba influenciando no trabalho, nas montagens de vocês ou não, isso não chega a..
Adriano: Eu acho que influencia bastante. Que nem a gente falou. A gente tinha a Sala Branca e a Sala Preta, né? Já estão coloridas. A gente coloriu pra tirar essa coisa fechada de hospital psiquiátrico e a gente trazer alunos aqui pra dentro. Isso a gente conseguiu quebrar um pouco. Mas sim, tem toda uma história aqui dentro, todo um clima que faz com que o nosso trabalho rume às vezes pra alguma coisa mais densa, mais pesada. Tanto que a gente trabalha com a pesquisa mesmo. Então a gente vem pega esse clima, esse ambiente e consegue trazer pro nosso trabalho. Eu acho que é mais ou menos isso. A gente consegue sim ter essas influências do espaço, sabe? Dessa arquitetura, do clima mesmo que tem aqui dentro, né? É um clima diferente.
Giancarlo: Vocês montaram praticamente todas as coisas aqui, ou não? Ou algumas coisas na Usina e outras aqui, ou sempre montaram aqui. Como é que é essa relação com esse espaço, ele acaba sendo o foco central pra produção de vocês ou não? Como é que isso funciona de verdade pro grupo?
Adriano: Sim, aqui é a nossa sede. Como eu comentei antes, aqui é a nossa sede, a gente ensaia aqui, dá oficinas aqui. O Gasômetro, a gente estava até 2012 lá no Gasômetro, hoje a gente tá como grupo convidado do Teatro Ofídico. Então lá a gente usa mais é pra apresentar. Como a gente não pode apresentar aqui, abrir pra público aqui, então a gente usa aquele espaço pra apresentar. A gente dá oficinas lá também. Então a gente foca aqui com oficinas e ensaios, algumas oficinas acontecem lá, dependendo do público. Algumas pessoas que moram pra zona sul lá é mais fácil então a gente dá oficinas lá. Uma ou duas oficinas lá, o restante aqui. Lá é mais pra apresentar mesmo.
Giancarlo: Tu falaste que de alguma forma esse espaço acabou ajudando a unir o grupo, a deixar o grupo mais unido. Tu acha que isso contribuiu ou como é que isso funciona de certa forma? Claro, a gente sabe que às vezes entram, saem outras pessoas e tal, mas eu digo assim: ele influencia também de alguma forma nessa união de vocês?

Adriano: Eu acho que sim. No momento em que a gente tá hoje, a gente tá mais focado aqui no São Pedro. Como a gente tá só como convidado no Gasômetro pra poder apresentar. Aqui no São Pedro é a nossa casa, sabe? E a gente consegue se apropriar muito desse espaço e consegue fazer com que os nossos colegas também se apropriem. E eu acho que isso vai mantendo um vínculo mais forte entre todos nós, tanto de manter o espaço arrumado, vir pra cá pra ensaiar e ter esse ambiente mais limpo, mais organizado. Eu acho que isso vai fortalecendo os laços e vai fazendo com que o grupo fique mais fortalecido, penso eu. Acredito eu nessa minha teoria.