Entrevista Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais - Transcrição

Participantes:



Transcrição


Giancarlo: Quem quiser pode começar.
Hamilton: Acho que só uma questão histórica, talvez a gente esteja aqui há mais tempo, que acho que é importante colocar, que foi em dezembro de 2001 que a gente procurou a direção do Hospital. A gente saiu da Vila São José, a gente veio pra cá, inicialmente conversamos com a direção do Hospital em dezembro de 2001 e fomos entrar mesmo, na ativa, aqui no São Pedro, em março de 2002. Tá no chão até: março de 2002 (mostra a marca feita no cimento do chão). Tem algum resquício aqui: ...ço 2002. Foi quando a gente tapou aqui. Era um vão, não tinha já a parede e a gente tapou com cimento. E na época escreveu “março de 2002” aqui no chão. É mais a questão histórica, quando foi. Nós estamos chegando em março de 2014, são doze anos de ocupação literal. E a ideia inicial, pelo menos da gente, da Oigalê, foi de não só a Oigalê ocupar esse espaço.
Quando a gente chegou aqui, isso aqui tudo era uma sujeira só. Eles nos mostraram uma sala, tu tava junto eu acho, Vera? Eles nos mostraram uma sala na Oficina de Criatividade no pavilhão 04 e a ideia era da gente ocupar aquela sala duas vezes por semana, três, que é onde está o núcleo de teatro que a Fátima coordena hoje. E daí a gente disse: Não, vocês não tão entendendo. A gente não quer usar duas ou três vezes por semana, a gente quer um espaço de ocupação, do cotidiano do grupo, ou seja, pra guardar material, pra ensaiar, pra tudo. Pra música, pra tudo que a gente precisava, pra confeccionar perna-de-pau, pra confeccionar cenário, figurinos. A ideia era essa: de um ocupação de um espaço público ocioso que, no caso, estava ocioso e imundo. E quando eles disseram: Ah, quem sabe mostra lá pra eles o pavilhão 06!. E dizia que o Falos & Stercus tinha feito um espetáculo aqui tinha tido a Bienal, além de alguns filmes de cinema, como Neto perde sua alma, que foi gravado aqui também, anterior a isso. Quando eu entrei aqui não tinha porta, na entrada não tinha porta, e era uma sujeira só, e eu falei: Bah, é aqui! É aqui!  “Tá, e como é que vocês vão fazer? Não tem luz, não tem banheiro...” Ah, a gente vai puxar a luz, a gente vai construir o banheiro com o tempo, a gente vai limpar, mas é aqui!
Então esse é só o fator histórico. Na realidade o Falos tinha feito o espetáculo e tinha deixado o material aqui. Como eles faziam vários espetáculos de ocupação pela cidade, tipo As Lobas, no Castelinho e o Alexandre fez Vargas, na ilha[1]. Eles fizeram aqui In Surto, que era na época era o Sabão e mais o Cebola. E aí eles fizeram (o espetáculo) e deixaram o material aqui. E nós ocupamos, começamos a ensaiar, e aí a gente viu a necessidade de não sermos só nós. Aí partir para o condomínio, convidar grupos para vir, para ser mais forte, aquela coisa de uma maior ocupação, tinha mais espaços livres: em cima, do lado... e daí na época a Oigalê participava do movimento dos grupos de teatro de rua. E aí deu o toque para vários grupos como no caso o Povo da Rua, o antecessor ao Caixa Preta que o Jessé era diretor, também. E veio o pessoal depois da escola da Terreira da Tribo, o pessoal saiu da escola e veio ocupar também. Isso é mais uma questão histórica, pra saber o tempo que a gente tá “internado” aqui por opção!
Simone: Como foi isso, Hamilton, de abrir para mais grupos?
Hamilton: Na verdade, assim. Foi o aval do diretor na época, não me lembro o nome dele agora, foi no governo do Olívio (Dutra).
Simone: O diretor do teatro?
Hamilton: Não, o diretor do hospital. Já tinha sido aberto pra Bienal, já tinha sido aberto pro Falos apresentar aqui e o diretor do hospital não liberou. Só que a nossa relação era muito maior com a Oficina de Criatividade, que fica aqui do lado. Eu não me lembro do nome da senhora que coordenava, e tinha um cara que era CC, digo, cargo de confiança, que eu conheci na Barão do Amazonas, assim, por acaso, e trabalhava também com Artes Plásticas. E ele ficava no meio conosco para coordenar, de conversar, fazer uma reunião mensal com os grupos e tudo mais. Então tinha essa figura do Hospital que também era artística, que trabalhava ali na Oficina de Criatividade; e depois, na passagem de governo, o Olívio perdendo as eleições, até quem foi candidato foi o Tarso, entrou o Rigotto e o Instituto Estadual de Artes Cênicas tomou a frente. Ficou meio aquela coisa... eles estouraram o cadeado, a gente conseguiu tirar o Negrinho do Pastoreio, que a gente estava fazendo na época, guardar numa garagem em um parente e aí conseguimos fazer o Negrinho. E aí em março lá de 2005, se não me engano, março de 2003. Em março de 2003, o IEACEN, com a Eva Schul, que retoma a conversa e eles... a gente volta e tudo mais. Em 2005 a gente assina um termo de concessão de uso, entre o Roque Jacobi, na época Secretário de Cultura, e Osmar Terra, Secretário da Saúde. Inclusive estou com uma cópia aqui deste termo de uso e depois o senhor pode gravar. Aqui no carro, que eu vou buscar.
Eu coloco isso muito mais pela questão histórica, a vinda de outros grupos também, que foram vindo com o tempo, porque eu acho super importante essa ocupação de espaço públicos. Foi um tanto quanto idealizada pela Oigalê. Obviamente o Falos & Stercus foi o primeiro grupo a apresentar aqui, a ocupar, ou seja, com um espetáculo e ensaios. Mas a ideia de fazer essa ocupação sistemática, de vir mais grupos e cotidiana mesmo, não só do espetáculo, tanto que todos os outros espetáculos da Oigalê foram, a partir do Negrinho, todos os demais até hoje foram concebidos aqui. Então a importância desse espaço como um espaço... não é porque a gente faz teatro de rua que não precisa de um espaço pra ensaiar, pra trabalhar música, pra confeccionar material. Então isso é extremamente importante, porque se trata de um grupo com trabalho continuado, e, digamos, que tem uma visão profissional, vive disso, e que depende também disso para viver, economicamente; não só vive disso, vive para isso e depende disso também como seu retorno econômico, de vida, de pagar suas contas. E também da necessidade física. Precisa desse espaço geográfico pra guardar material e pra ensaiar.
Karine: Acho que o grande barato é isso mesmo, de ter um espaço onde tu possa manter um trabalho continuado, porque isso é uma falha dentro desse meio artístico, que a gente não tem um local de trabalho, onde se possa ter todos os dias, pesquisar, investigar uma linguagem, construir o que é esse grupo, o que é esse trabalho, o que se quer dizer. Porque: ah, hoje a gente se encontra ali no parque, amanhã a gente se encontra em outro lugar, e acaba que o trabalho, ele não acontece. Então tu não tem o espaço físico pra estar lá todos os dias, pensando sobre aquilo.
Simone: Fora todo o material que tem, né?
Karine: É.
Simone: Que se carrega, que precisa pra fazer o trabalho de teatro. Parece que é só o corpo. Não é só o corpo. Tem figurino, tem cenário, tem elemento cênico, tem instrumentos musicais que são coisas caras, que não devem ser jogadas de um lado para o outro.
Karine: Num depósito que daí tu tem que buscar quando dá.
Simone: Ou na casa das pessoas. Tem isso também, grupos que não têm espaço de trabalho que acabam armazenando em locais que pagam pra armazenar nesse lugar, se deterioram, o material se deteriora. Ou ainda fica na casa das pessoas, ocupando espaço das casas das pessoas. Essas pessoas às vezes viajam, fazem outras coisas de suas vidas, e isso vai quebrando um trabalho homogêneo, um trabalho que o grupo pode... a continuidade mesmo, quebra a continuidade.
Mariana: E a importância também desse espaço que, claro, eu entendo que a proposta inicial era ter um retorno aqui dentro do Hospital, mas, enfim, a gente não tem essa proximidade com o Hospital pra fazer o retorno, pra estar aqui, pra trazer gente pra vir pra cá, também, pra conhecer esse lugar. Mas importante é que o espaço é isso, ele não é um só lugar. Ele é um espaço que é utilizado por artistas que vão pra rua e também não estão cobrando. Então, a gente tá fazendo uma coisa com retorno imediato para o público. Imediato e gratuito. Assim como nos foi cedido esse espaço, a gente apresenta e o público não paga absolutamente nada.
Karine: E esse fato de ser um espaço público ocioso que eu acho que é o principal né. O que se faz aqui? É um prédio que se deixa ruir pelo tempo. Não, tá sendo aproveitado pra construir algo pra ter uma troca com a comunidade, com a população. Senão ia estar aqui, ainda, jogado.
Vera: E o fato de ser um hospital psiquiátrico, que isso é revolucionário. O que tá acontecendo aqui, se a gente conseguir manter, é um exemplo pro mundo, porque é muito difícil isso acontecer. A loucura e a arte junto e transitando entre um e outro. Quem é mais louco? Quem tá dentro ou fora do hospício? Quem é o louco? É o artista? É louco ou não é? Então tu vai misturando as coisas. É lindo, quando tinha apresentações aqui, o pessoal fazia apresentações aqui dentro, a bilheteria era lá na frente. Lá nos guardinhas. Aí tu chegava lá tinha um bando de gente, aí tu não sabe quem tá esperando pra assistir ao espetáculo, quem tá esperando um atendimento psiquiátrico, quem tá esperando pra visitar um amigo ou um parente. Quer dizer, a vida se mistura, não tem mais essa separação. E é isso que tem que ser. Acabar com essa segregação. Se tu tem um hospital psiquiátrico para os loucos, aparentemente louco, daqui a pouco tem que ter um hospital psiquiátrico para os artistas, que também são loucos e que também são diferentes e assim tu vai tendo um hospital psiquiátrico para cada tipo de loucura. E não é, acho que a ideia é abrir, é transformar esse hospital psiquiátrico num grande centro cultural, ao contrário, não é transformar o hospital num espaçozinho que tem cultura. É um espaço cultural que tem um espaçozinho que faz atendimento. E aí tu inverte a lógica das coisas.
Mariana: E esse trabalho que a gente faz, acho que a coisa que eu mais sinto falta. Porque a gente vem aqui todos os dias e a gente não troca, porque, enfim, por resistência, por barreira, por briga, porque quer ceder ou não quer ceder o espaço. A gente não troca com esses internos que estão aqui, eles podiam estar aqui dentro, eles podiam assistir muito mais os espetáculos. A gente podia ir, porque eles tem as casas ali no final, a gente fazer apresentação ali, a gente podia estar mais envolvido. Tem oficina de teatro e a gente que é daqui, que tá aqui há doze anos não foi chamado pra dar essa oficina de teatro, entende? É um lugar tão bonito e tem uma energia tão carregada, que a gente consegue transformar essa energia aqui dentro, a gente podia levar essa energia pros outros pavilhões.

Hamilton: Eu tenho uma boa notícia. As coisas mudaram. Num sentido eu concordo plenamente com o que a Mariana tá falando, são sete anos, praticamente, de reclusão, que nós somos tratados também, literalmente, como marginais loucos e estamos aqui por favor. É um favor eles nos deixarem esse tempo aqui porque nós vamos ter que sair enquanto não chegar a reforma. Vamos ter que sair. Esse era o discurso: Vamos deixando vocês só pra não nos incomodar e pra não queimar o filme. Quando chegar a reforma nós tiramos eles. Só que não pensava-se o seguinte: só um pouquinho, reforma o cinco, a gente passa pro cinco todo mundo, mesmo apertadinho, usa parte, usa o que dá, reforma o seis e depois a gente volta. Não, a reforma é pretexto pra mandar embora, pra excluir, mas vamos deixando eles pra não queimar o nosso filme. Que essa era a relação.
Hoje a relação mudou. Ao que parece, a gente vai tentar até abril, estamos trabalhando pra isso, em uma semana já é a terceira reunião que a gente vai ter, de emendar isso e de tentar assinar um documento que qualifique a nossa presença aqui. Que qualifique nesse sentido, de que seja legal a nossa presença, que seja permanente e que a gente possa circular por esse Hospital e os pacientes por aqui também. Quer dizer, ter essa troca, que eu acho que já começou com o ensaio do Deus e o Diabo que a gente fez lá na frente, que os operários já pararam e já olharam, os pacientes ficaram olhando, os funcionários. O próprio guardinha ficou olhando. O diretor passou e o Ilson convidou ele pra ir na apresentação no dia e ele não falou nada, quer dizer, o guardinha que antes vinha dizer: “não pode, não pode”, estava tranquilo. A gente teve uma relação com a nova Secretária de Saúde e com a nova comissão, nova assessoria, de que ligasse pro hospital e dissesse: Não, acabou a proibição. Eles podem fazer parte, eles podem e vão fazer em qualquer lugar. Ou seja, a cultura é saúde. A cultura deixa o cidadão melhor, ela faz parte de um programa de governo público também, que aí entra na questão da arte pública, da necessidade de uma arte pública e não da arte privada, do ingresso, do aluguel de sala... Tu tá dando o retorno para o público, e o retorno não é para o Estado, e sim para a população, e sim para o público. Que é isso que importa e por isso também a questão pública.
A boa notícia é que vai se abrir um edital. A gente tá montando um edital onde pessoas ou grupos possam fazer propostas pra oficinas de teatro. No São Pedro e no entorno do São Pedro. A ideia não é só ser quem está ocupando, mas sim outras pessoas mais. Óbvio que tem que ter a clareza do que que é esse projeto e essa relação. Eu não vou lá no Hospital dá aula só pra ganhar um salário por mês. Pelo menos esse é o nosso ideal. É uma pessoa que queira transitar nesse universo da loucura e da arte. E também não necessariamente só a loucura e a arte, mas também no entorno, ou seja, trabalhar numa vila, trabalhar com os funcionários, trabalhar na Cachorro Sentado, na Conceição, na São José, na Murialdo, no Morro da Cruz. A ideia é ambiciosa e aí sim se tornar um centro cultural de referência dessa região. Porque na realidade Porto Alegre, é um outro fator também que é super importante, Porto Alegre não tem nada culturalmente descentralizado, a não ser escola de samba e CTG. Mas centro cultural não tem nenhum. O papel disso aqui virar um centro cultural com a loucura e ter um pequeno posto de atendimento. E se isso se transformar numa efervescência cultural, é extremamente importante. Só que existe um outro setor da sociedade que quer transformar isso aqui num elefante branco e obviamente, depois, futuramente, privatizar...
Vera: Num shopping...
Hamilton: Ou um shopping, ou uma grande casa de espetáculos pra alguma grande produtora, ou como aconteceu com o Araújo Viana, que a gente vai contra essa ideia, e por isso boa parte da sociedade é contra esse projeto.
Mariana: Porque a princípio não traz renda, retorno financeiro nenhum.
Vera: Por falta de entendimento. Porque tem aquele que fica pensando: bom, nós vamos fechar o hospital e transformar num teatro. Não, pera aí! E os doentes? Onde é que vão? Hospital é pra doente. E não é isso.
Mariana: A gente tem o pavilhão do lado. O nome do pavilhão é Nise da Silveira. Essa mulher revolucionou a psiquiatria botando as pessoas pra fazer arte. Claro, artes plásticas, no caso. Ela pesquisava esquizofrenia no resultado artístico dos pacientes. Chega a ser esquizofrênico também, porque é um espaço com o nome de alguém que não acreditava na instituição hospício com grades, com portas, que deixava as pessoas serem livres e se expressarem artisticamente dentro do seu transtorno e a gente ter essa condição que a gente não...
Hamilton: A ocupação lá no Rio de Janeiro é Viva Nise da Silveira. Tem uma matéria que o Gian mandou pra todo mundo que é:  Arte premia hotel com sexta estrela. E pacientes transformam o prédio em obra de arte. É uma matéria bem legal que até a Vera vai passar amanhã pro pessoal, pra Fátima.
Simone: A gente tá resistindo a um discurso que é hegemônico que tá aí, que todo mundo fala nele, que é dos marginais. Aqueles que não tão dentro de um padrão, um padrão de beleza, um padrão de saúde mental, um padrão de marginalidade no sentido de ser bom ou mal, quem é bom e quem é ruim. Quem é sadio e quem é doente, quem é bonito e quem é feio. A gente tem um discurso que rege, que estão sempre em jogo de poder. A gente tá num lugar de resistência nesse lugar de poder que é hegemônico. Aonde é que tá a loucura? Foi construído isso. Essa loucura foi construída, ela foi feita. Não foi sempre assim. Não teve sempre um lugar de prisão pra quem não era tido como certinho. Isso foi inventado. Foi tão inventado que é possível, a partir dessa invenção de loucura é possível se fazer um prédio desse tamanho. Isso é a própria invenção da loucura. O prédio. Esse mausoléu é a loucura. Então, quando a gente briga, e entra numa situação de resistência a esse discurso que é hegemônico, que é dominante, a gente tá fazendo mexer, movimentar e fazer daqui sei lá quantos anos, esse discurso ir se enfraquecendo, ir se dissolvendo e acabar. Até chegar a acabar. Não sei. É utopia? Não sei, é um momento de resistência. E é principalmente o momento da gente colocar o bloco na rua e dizer: Não, esse lugar que é uma cultura, olha só o tempo que ele tá aqui, é história, só o tempo dele estar aqui, de ter levantado essas paredes, é história, tempo de escravidão...
Hamilton: Tempo do Império.
Simone: É tempo de Império, da história de um Brasil, de um lugar que foi feito dessa maneira de construir o homem ocidental. Separando o bem e o mal, separando o louco do sadio, enfim. E o fato da gente ocupar esse espaço e dizer: Não, isso foi inventado. Nós vamos tirar esse lugar de discurso de verdade porque não é uma verdade. Ele pode ser mexido. Não é um discurso de verdade. É um discurso que pode ser uma verdade de um grupo, não é nossa. Então isso é fundamental que a gente ocupe e diga, e fale, e se reúna, e ocupe um espaço que tá aqui parado, que tá caído, se a gente não tivesse aqui. Porque literalmente...
Hamilton: No meio dessa trajetória, desses doze anos, ele estava parado, jogado e não se tinha um destino. No meio dessa trajetória se criou um destino pra ele. Que é elitizar, que é aqui um auditório, mais um museu, mais não sei o que, e ser um grande elefante branco. No governo da Yeda, a força-tarefa, tirou de fazer isso, porque até pra excluir a ocupação. “Se nós nãos pegarmos e fizermos alguma coisa, os grupos de teatro vão ficar lá. Nós temos que tirar eles, nós temos que apresentar um projeto pra tirar eles.” E essa foi a ideia. A nossa contraposição foi a seguinte: quando entrou o governo do Tarso. “Vocês tem algum projeto pra essa área, pra esses pavilhões 05 e 06?” A gente na realidade não tinha, é claro. Cada grupo ocupa uma parte, e era mais ou menos isso. Só que a gente parou: não, só um pouquinho, a gente precisa ter um projeto real pra poder lutar, pra poder contrapor com esse outro lado. Ou seja, tem o nível da loucura, mas também tem o nível da organização, da esfera da criação aqui dentro. Criar a própria criação, ou seja, organizar as ideias também nesse sentido, que foi aí procurar a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que também é pública, e que isso é extremamente importante. Um espaço público pra uma Universidade pública, onde tem um escritório-modelo de arquitetura e urbanismo que a gene conseguiu três bolsistas, com dinheiro público, pra fazer toda a medição e pra fazer todo um estudo de projeto arquitetônico. Ou seja, agora nós temos uma proposta e inclusive o Iphae, o Instituto do Patrimônio Histórico estadual[2] apoia, o diretor na época, que agora é diretor do Iphan[3], está como diretor do Iphan. E esse foi o grande contraponto, daí ficou pior ainda. A situação ficou pior. “Opa, o inimigo não é tão fácil assim. Eles se organizam, vão lá e eles fazem. Eles conseguiram que a Arquitetura abraçasse, doutores da arquitetura abraçassem essa loucura, que é ocupar culturalmente um hospício” E aí, quando isso acontece, o que é que nós vamos fazer? Nós vamos proibir os estudantes de arquitetura e os professores de arquitetura de entrarem no São Pedro. Os guardas proibiam. Então o que a gente fazia num primeiro momento? Entrava na Kombi, ou não diz que é estudante de arquitetura. Se perguntarem, vocês vão no teatro. Não fala que é estudante de arquitetura. E a coisa foi sendo um pouco burlada e quando se viu, dois anos praticamente, se tem um estudo do projeto, que o próprio Iphae fala que é melhor que muito projeto de muito arquiteto que se apresenta aí.
Então a ideia agora é tocar, quer dizer, uma ideia utópica, foi uma ideia utópica. Hoje ela já é mais concreta. E uma outra ideia também que veio conjuntamente com isso é de abrir mais espaço. É de garantir os espaços dos grupos que estão aqui presentes, idealizar melhor o espaço na questão elétrica, na questão hidráulica, na questão de camarim também. Um banheiro pra quem faz teatro não precisa ter vinte patentes e um chuveiro. Não, de repente são três patentes e dois chuveiros. Ou três chuveiros também, porque depois do ensaio tem que tomar banho. Hoje a gente ainda não tem essa estrutura. Ou do próprio espetáculo que tu tá fazendo, dependendo de como é a montagem tu se pinta todo, quer dizer, tu precisa muito mais também de chuveiro. Mas, não só isso, organizar também a questão estrutural, de escritórios, sala de depósito. Ter um elevador de carga externo que não machuque o patrimônio histórico, que não agrida. A ideia é aqui do lado também fazer uma grande praça. Esse galpão ser destruído, já que tá todo caquético e fazer uma grande praça com rampa pra acessibilidade. Porque na realidade a gente não tem acessibilidade pela escada, pela entrada da frente. Não tem acessibilidade. Ou seja, um cadeirante não entraria. E inverteria a entrada. E acho que é possível tentar, dentro desse argumento também que a Vera falou que é a primeira vez no mundo talvez que isso esteja acontecendo de forma forte, tu pode tentar conseguir Emenda Parlamentar, Banco Mundial, tu pode começar a pensar maior. Só que é óbvio, a única coisa que a gente precisava era a maldita vontade política.
Ilson: Na verdade é a bendita.
Hamilton: É a vontade política, é alguém que assine, alguém que diga: não, só um pouquinho, vamos bancar isso. E abrir espaço para mais grupos também, e quando isso aqui, na minha utópica ideia, estiver pronto, a ideia é circular muito mais gente. As portas estarem muito mais abertas. Tem ideias de fazer visitação, de pegar escolas da região e fazer visitação, irem olhar ensaios abertos, pra quebrar esse dogma disso aqui. A ideia também nossa é de exatamente um circo mambembe. Não tem mais lugar em Porto Alegre. Porque tudo virou especulação imobiliária. Esse campo aqui na frente é um puta dum lugar pra circos, e trocar. Os pacientes irem ver, a comunidade. Tantos ingressos, não ser uma coisa capitalista, de alugar o terreno pro circo. Ser uma coisa de permuta, uma coisa de troca, social, isso é uma outra ideia. No novo projeto que a gente apresenta se abre no mínimo pra mais três grupos. Quando eu digo no mínimo mais três grupos, por que? Porque teria mais três salas, pode ser a discussão que for, ou grupos que queiram continuar trabalhando, ou não, ou grupos que estão fazendo uma montagem.
E também acho que a gente precisa de uma redistribuição quando a coisa ficar na esfera, quando a coisa estiver mais pronta, quando estiver mais concreta. Que que eu digo com uma rediscussão? Um novo aproveitamento, mais aproveitamento do espaço. Ou seja, um grupo só ensaia de noite? Tem como outro grupo, na sala de ensaio, ensaiar outro dia. Tem grupos como a gente que praticamente ensaia de manhã e de tarde, tem como um grupo ensaiar aqui de noite. Óbvio, grupos co-irmãos, pessoas da universidade que não tem espaço, ou criar, porque não, um grupo do Partenon, da comunidade, dos funcionários do Hospital. Tudo é possível. Porque a gente fala tanto dos pacientes, do entorno e às vezes esquece dos funcionários também.
Simone: Não, e não são mais. A gente tá mudando o nome. É importante a palavra. A palavra ela é um totem. Quando tu fala em paciente, tu tá falando em alguém que está passivo praquele tratamento. A gente tá mudando essa palavra pra usuário. Ou seja, aquela pessoa que precisa de um atendimento esporádico. O paciente é aquele que precisa de uma coisa crônica, que está ali pacientemente esperando, sendo mandado fazer. Tá sendo mudada essa palavra, aos poucos a gente vai se apropriando também da maneira como a gente usa essas palavras. Esse usuário do São Pedro aos poucos tá saindo do São Pedro e indo pra casas fora do São Pedro.
Hamilton: Moradas.
Simone: Ou seja, eles estão se auto-gerenciando, eles estão sendo cidadãos. Estão tendo o direito de ser cidadãos. São pessoas que não tiveram esse direito, que foram jogadas aqui dentro, um pedaço de carne. E esse espaço que a gente tá tendo aqui é um espaço tão bacana, de poder apresentar o processo de um trabalho, por exemplo. É um jeito.
Eu vejo a possibilidade de fazer um trabalho de formação artística dentro do São Pedro para os usuários do São Pedro que envolve tanto um trabalho mais de execução, ou seja, tu faz isso, agora tu faz aquilo, um trabalho de audição, que eles venham assistir uma coisa que esteja sendo montada pelos grupos, ou ainda um trabalho de criação mesmo, que esses usuários possam criar coisas. Ou seja, fazer um trabalho mesmo de formação envolvendo essas três instâncias, de audição, de execução, de criação. Eu acho que isso é possível, eu acho que isso valoriza o trabalho dos artistas, fazendo chegar a esse que não vive de arte, mas que pode se alimentar de arte pra ser melhor no mundo, pra ser inserido e virar um cidadão realmente. Todos podemos, nesse sentido todos podemos fazer arte.
Eu acho que é super importante essa relação de alimento que o usuário do São Pedro já dá na formação dos espetáculos, a gente quando ensaia, ensaia pra eles e eles são nosso termômetro se tá dando certo ou não tá. Isso já acontece. A gente pode expandir essas relações. Então, estar nesse ambiente é muito rico, é muito rico pra arte.
Hamilton: E ao mesmo tempo eu acho que a gente tem que ter um certo cuidado, porque na realidade a gente não é funcionário público, nem quer ser funcionário público. A gente não quer tirar o lugar do funcionário público ou de pessoas que estão aqui e são funcionários públicos. É essa medida também. Porque a gente vive muito, especificamente na Oigalê, a gente vive muito da estrada. Então, quer dizer, como poder abrir isso pra outros profissionais do teatro que queiram fazer isso também. Não é nós, só nós vamos fazer aqui, que nos chamaram. Não, pô, nós estamos viajando, nós vamos ficar um mês fora. Bah, vamos largar? Estamos dando duas, três oficinas aqui, vamos largar? Não. Como a gente tem essa ligação pra poder deixar outras pessoas fazendo isso também e poder seguir nosso caminho de artista para o todo também, pra sociedade como um todo.
Não só o Hospital, mas é como também ter esse cuidado, porque daqui a pouco a gente vai tão, assim, viaja na loucura e tal, com tanta sede ao pote que daí a gente vai se institucionalizar no São Pedro e vai viver fazendo espetáculo no São Pedro, dando oficina pra comunidade e pros pacientes, que não é ruim, tem que existir isso, tem que existir. Mas ter essa medida. E a briga é pra que outras pessoas também venham pra ocupar esse espaço.
Simone: À medida que isso for acontecendo, eu vejo a possibilidade sim, aí sim de se realizar, fazendo calendário de oficinas, um calendário de apresentações e que não vão tá sempre nos mesmos grupos, porque esses grupos têm vida própria, eles viajam, fazem suas coisas, mas também trabalham com o que acontece dentro desse espaço.
Hamilton: Respondendo um pouco o que tu perguntou, eu acho que o tempo a gente tá aqui, que é de doze anos. O grupo tem quinze anos e doze a gente tá aqui, ou seja, 80 por cento da nossa existência, e a tendência é cada vez a ser maior, 85, 90 por cento, quase chegar a 100 por cento. Eu quando nós tivermos trinta anos vai ser 90 por cento da nossa existência aqui dentro. Eu acho que hoje já se funde, principalmente com a gente, da Oigalê. A Oigalê fica lá no São Pedro, a grande maioria das pessoas sabem disso. E pra nós é extremamente importante um espaço físico pra criar espetáculos, pra dar oficinas, pra aprimorar o nosso trabalho, pra questão de aulas musicais com a Simone, quer dizer, várias coisas pra gente ter um espaço pra guardar todos os cenários. Que isso nos possibilita também trabalhar com repertório.
Giancarlo: Quais foram os espetáculo?
Hamilton: Espetáculos que a gente não fez aqui foi o Deus e o Diabo[4], que a gente montou na Vila São José, Mboitatá, na Vila São José. Em 99 Deus e o Diabo, Mboitatá em 2001 e Cara Queimada em 2001 também, já ocupação no Teatro de Arena. Aqui foi O Negrinho do Pastoreio, em 2002. Em 2005 a gente monta uma intervenção pra CORSAN, em 2005 a gente monta uma intervenção de verão pra Corsan. Em 2006 a gente monta A Máquina do Tempo e A Aventura Farroupilha. Em 2008 a gente monta Miséria, Servidor de Dois Estancieiros. Em 2012, O Baile dos Anastácio.
Giancarlo: Tem o Era uma Vez.
Hamilton: Tem o Era uma Vez. É antes. Tem o Era uma Vez em dois mil e...
Vera: Nove.
Hamilton: 2009. Logo depois do... tem o Miséria em 2008, em 2009. O Baile em 2012 e Circo de Horrores e Maravilhas em 2013. Essa é a produção que a gente fez, são dez espetáculos ao todo, além de algumas intervenções que a gente fez, oficinas, e também tudo isso. Eu acho que a Oigalê cresceu muito e não só na questão de trabalhar com repertório, mas na questão de circular pelo Brasil bastante. E virou também uma referência de teatro de rua, principalmente, não só no Rio Grande do Sul como no Brasil. Então, quer dizer, a gente praticamente participou de quase todos os festivais já uma, duas vezes no Brasil. Alguns ainda não, por ranço com o teatro de rua, mas tudo bem. Nem tudo é perfeito, né. Não podemos agradar gregos e troianos.
Giancarlo: Eu queria que falasse sobre a influência do espaço no processo criativo. Mas o Hamilton é o último a falar.
Vera: Diz que morreu muita gente aqui, que muita gente sofreu, muita gente levou choque. Mas eu não acho que tenha uma energia ruim. Quando nós chegamos aqui, nós limpamos tudo. Era horrível, era muito sujo. Isso aqui, essas lajotinhas aqui estavam tudo quebradas. Nós tiramos com espátula tudo, pintamos de cal, passamos sal grosso no chão inteiro, pegamos incenso. A gente fez uma limpeza e eu acho que a gente tá aqui pro bem. Enquanto a gente estiver aqui a gente tá limpando algo de ruim que tenha acontecido. Então não é ruim não.
Mariana: A gente entra com essa energia criativa, em vez da energia destrutiva que tem nesse ambiente e a gente modifica essa energia.
Karine: Isso é muito perceptível porque o espaço aqui da Oigalê, a energia quando tu entra aqui é diferente de quando tu entra no Povo da Rua, de quando tu entra no Falos ali em cima. Então é isso, conforme a gente habita o espaço a gente coloca o que a gente tem pra trazer. A gente reparte o que a gente carrega com a gente. Então, óbvio que tem resquícios do que passou, óbvio que de noite a gente entra aqui e é muito mais assustador, todo mundo fica assim: ai, ai
Hamilton: Ainda mais sozinho.
Karine: É. Mas é isso. A gente tá pro bem, e o espaço vai se modificando.
Vera: Medo a gente tem que ter é dos vivos.
Karine: É.
Paulo: Eu tenho uma experiência também. É um pouco diferente. O pai do meu avô morreu aqui nesse hospital.
Hamilton: Teu bisavô.
Paulo: É, meu bisavô. Eu tenho uma experiência meio mítica nesse espaço. Nos dois sentidos, que é esse estigma familiar, esse avô que morreu aqui, e essa possibilidade de fazer arte. Então tem uma coisa amorosa pra mim, que é um pouco, não sei diferente, mas especial, de ter construído um trabalho aqui dentro, de ter essa possibilidade de ter esse trabalho continuado aqui dentro. Isso é, não é triste pra mim, é uma coisa bonita. É uma história que eu carrego junto.
Karine: Com certeza com a energia daqui a gente já tá mudando isso.
Simone: É uma espécie de redenção.
Hamilton: É. Eu já tô liberado pra falar?
Giancarlo: Não.
Mariana: Eu lembro quando eu cheguei a primeira vez aqui, que foi em 2005, eu estava começando a fazer teatro, estava entrando na universidade e vim aqui fazer oficina no verão. E a coisa que mais me chamou a atenção é:nossa, olha o espaço que eles têm! E era uma energia completamente da energia quando tu entrava no Hospital. Hoje em dia eu tô acostumada com a energia de entrar no Hospital porque eu tô aqui circulando quase que diariamente, praticamente. Mas quando eu entrei, a gente entra assim: nossa!. E os internos aqui passando, e tu dizia: ai. E tinha gente que fazia oficina que tinha medo e que saía correndo de noite, porque a gente fazia oficina de noite. E gente dizia: ai, eu vou sair correndo daqui. Mas aqui dentro é outro universo. Dentro de um hospital é incrível como aqui é outra coisa. É outra história, outra sensação, outro sentimento.
Vera: E aconteceu também de gente se inscrever pra oficina e chegar aqui na frente e ir embora. Não aparecer pra oficina.
Ilson: E pra registro também, eu tive uma tia minha que foi residente aqui por um período também. Mas ela desde pequena, ela dizia que tinha visões. E os médicos diziam que tinha lá uma esquizofrenia. Um tanto de esquizofrenia, que de uma certa maneira todos temos. E aí os médicos diziam que ela precisava desenvolver uma habilidade espiritual senão nem a pobreza ia querer ficar ao lado dela. Ela foi realmente muito pobre, muito segregada e teve um período como residente aqui.
Aí um belo dia ela apareceu na casa da minha mãe: “O que que tu tá fazendo?” “Ah, eu tava morando, eu tava lá no São Pedro mas me deixaram sair.” Aí ninguém sabe como, com toda essa loucura que ela tinha, ela encontrou a mãe e tava voltando lá pro interior, voltou pra Pelotas. Mas nós dois temos parentes aqui.
E uma questão que eu queria colocar, dentro dessa questão da ocupação pública, o Hamilton colocou tudo o que a Oigalê desenvolveu, tudo o que foi projeto e tudo o que foi concluído durante esse período onde nós fomos reconhecidos, e não somos reconhecidos, nós fomos legais e ilegais. Onde não nos tiram, mas não nos reconhecem. Essa nossa ocupação de espaço público passou durante todo esse período por isso. Avanços e retrocessos. Às vezes nos sacodem uma cenoura na frente dum burro que faz a gente participar de algumas reuniões políticas, acreditando que vamos sim, vamos chegar num acordo. Aí trocam a coordenação política, trocam os articuladores políticos e nós daqui a pouco não somos mais válidos. Aí eu tenho quase que um questionamento: quanto mais poderíamos ter produzido se não tivéssemos, durante todo esse período, que nos ocupar? Vê o Hamilton, todos nós. Eu participei dessas criações dentro do grupo do projeto da arquitetura. Ter que te preocupar com a arquitetura, te preocupar com lei, ter que te preocupar com patrimônio histórico, ter que desenvolver todo um projeto, toda uma linguagem. Tempo esse em que não estás produzindo como artista. Tu tá te especializando em um monte de coisas, em lei, em articulação de leis, em articulações políticas para o simples fato de buscar o reconhecimento de ocupar um espaço que sim, é ocioso, sempre foi ocioso; hoje não existe um plano. Até hoje não existe um projeto de ocupação, digamos que isso aqui fosse se tornar uma grande ala psiquiátrica de referência. Não. Esse é um prédio tombado pelo patrimônio, não pode mais ser utilizado na função de hospital; os residentes que têm aqui praticamente não podem mais crescer, ou seja, não vai haver uma utilização na questão clínica.
A própria linguagem clínica do que é normal ou anormal hoje, ela já não, ela não tem uma linha clara hoje e se tu faz um estudo de mandala na tua casa tu paga mil e quinhentos pra uma terapeuta: bom, tu é uma pessoa que tá fazendo terapia. Em 1900 te botavam aqui. Se tu caísse na asneira de tentar qualquer signo ou falar uma língua estranha te internavam, tu ficava recluso. Hoje não, hoje tu paga uma fortuna no final de semana: ah, fulana tá fazendo terapia. Fulana é louca! Se fosse em 1900, ela ia pro São Pedro. Se não concordasse com o sistema da família, ela ia pro São Pedro. Isso tudo mudou. E a nossa conexão com a questão da arte, eu tenho a experiência prática de estar aqui no pátio ensaiando, trabalhando com música e vem um residente e começa a cantar uma música da Elis Regina muito mais afinado que todos nós. E no que a gente fica parado olhando pra ele, ele entra “o bêbado e o equilibrista” e tal. E a gente fica fazendo, tocando gaita, tocando bombo pra ele cantar. E ele canta, canta, canta e vai embora. E ai? Quem tomou o benefício do que? E a gente, nós praticamente vivemos e permeamos a nossa vida junto com esses residentes.
Tem um outro registro que eu gostaria de deixar, que eu sempre me lembro, que é a prova de que essas pessoas não podem ser segregadas, nem nós podemos ter esse tipo de sensação. Depois de estar um ano, um ano e tanto aqui passando; eu tenho o mal hábito de dar bom dia pra todas as pessoas. “Bom dia! Bom dia! Bom dia!” E um dia eu passei por um residente e ele disse: não! E eu comentei com a Vera: Ih, ele tá chateado! E a Vera disse: ué, é a primeira vez que eu escuto ele falar. Ele não fala com ninguém. Aí mudou completamente do ele estar chateado ao ele não fala com ninguém eu tive um não como resposta. O não é uma resposta. Ele me deu uma resposta. Ele me disse não! É possível uma comunicação. Passa um tempo, nesse nosso universo de vai e vem, e um dia esse mesmo residente estava parado no meio do pátio e eu estendi a mão pra cumprimentar e ele apertou a minha mão e botou na cabeça dele e ficou me olhando. E eu fiquei ali uns trinta segundos de praxe, com a mão na cabeça dele. Fui tentar tirar. Ele botou a mão de novo e ficou me olhando. Ele não deixava eu tirar a mão da cabeça dele. Eu tive que abraçar ele e ele só me olhava. Eu com a mão na cabeça dele. E fiquei, não sei, um tempo infinito, até que ele deu às costas e foi embora.
Simone: Quem faz oficina com quem, né?
Ilson: Quem estava fazendo com quem? Eu sou o artista, ele é o louco. Ele é o artista, ele me disse alguma coisa, eu entendi, eu não entendi. Isso me toca. E a sociedade muitas vezes não se permite ver essas coisas. E nós, sim, nós somos contaminados. Eu sou contaminado com isso. Mas essa é uma contaminação boa. Uma contaminação que me leva pra rua, que me faz mostrar essa questão da arte.
E eu ainda volto à pergunta original: se nós tivéssemos um reconhecimento e todos esses projetos adicionais que a gente pode aplicar com o reconhecimento do poder público, quanto nós podemos produzir? O que a gente já produziu pro Estado, o que a gente já produziu pro país, o que a gente já produziu em termos de cultura por ocupar esse espaço público é inquestionável. Isso tá na rua. Isso tá nas redes sociais, isso já está nos livros, já está na Academia. O nosso projeto aqui foi modelo utilizado pela arquitetura pra discutir em congressos de arquitetura a possibilidade de ocupação do espaço público. Quando o Iphae deu o parecer técnico, foi um parecer de qualidade, dizendo que sim, o que vocês fizeram, o que vocês nos apresentam é possível e pode ser executado. No entanto, nós continuamos com as mãos amarradas a reuniões com o poder público que vão nos olhar com benevolência e vão dizer assim: Ah! Sim! Claro! Nós vamos ver o assunto de vocês! Só que vocês nunca são nossa prioridade! Nós nunca somos a prioridade. Quanto tempo vai demorar pra que isso tudo seja assinado, pra que a gente seja reconhecido legitimamente, como trabalhadores da arte que utilizam o espaço público em benefício público? Essa é uma pergunta que a gente não tem resposta. A gente tá sempre perto da resposta. Basta uma pessoa mudar um cargo no governo. Basta um secretário ficar azedo, o partido dele não combina com o partido de não sei o quê, ou porque a presidente, o ministro não sei o quê e acabou. Ou seja, nós fazemos tudo isso e ainda temos a fragilidade. Com tudo, com toda a autoridade que nós temos, temos a fragilidade de depender de uma ação política, chamada vontade política. Então é um questionamento. Quando que esses políticos, esses senhores secretários que passam e repassam por nossa vida vão prestar atenção que o que nós estamos fazendo reverte em benefícios pra toda a sociedade. Da sociedade como um todo. A arte é curadora. A arte talvez seja uma das muitas possibilidades no meio dessa loucura que é esse mundo que nos olha com desdém ainda. Esse mundo que eu falo é o mundo do poder público. Parece que as pessoas quando estão com o poder público na mão, elas estão distantes. Quem são os loucos? Aonde estão os verdadeiros loucos que precisam perceber isso?
Mariana: Mas eu vejo também a questão política de justamente não nos querer. Nós somos transformadores. Eles não nos querem porque a gente consegue, porque a arte é curativa, porque não vai precisar dopar uma criatura, pra simplesmente fazer arte. Há muito tempo atrás se lobotomizava doentes, agora não se pode mais, por lei e tal. Mas é isso. O que é melhor: cortar uma parte do cérebro e deixar a pessoa apática? Gastou dinheiro público com cirurgia, gastou médico, gastou anestesista. Ou fazer um tratamento, uma terapia.
Vera: Gastou uma vida.
Karine: Mas a gente tá aqui pra gastar.
Mariana: E é isso. A gente não é tratado porque a arte ela é extremamente transformadora, socialmente, culturalmente, traz saúde, traz cultura, traz informação, traz consciência. É o que eles não querem. Eles querem carneirinhos que obedeçam aquilo que tá traçado, que vota naquelas pessoas naquele período e que voltem pra sua vida e que fiquem felizes com aquilo que tem.
Vera: Eles até estão felizes da gente estar aqui. A gente tá sob controle.
Hamilton: Acho até que tem outra questão também. A gente falou da questão pública e não sei o que mais, mas não é uma questão nem de direita, nem de esquerda, porque isso é um pouco demodê, mas é uma discussão sim do público pro capital. Ou seja, quando a gente fala de saúde não ter que ser ingênuo que se mexe com muitas drogas na saúde, com grandes editais, com químicas. Quer dizer, com grandes empresas químicas também. É muito maior o universo que a gente fala.
Ilson: Do capital.
Hamilton: Do capital. E da mesma forma isso se espelha na cultura. É muito maior quem quer explorar a cultura como capital do que quem quer fazer cultura e arte com um desejo utópico e um retorno pra sociedade. Retorno pra sociedade, aqui! Vai pagar o ingresso! Vai usar o vale-cultura pra isso. O porque que o Araújo é privado agora? Eu acho que existe uma grande relação nisso, de tu ocupar um espaço público e já se dá esse retorno para o público e não tipo, “eu peguei um espaço público, reformei e agora vou explorar esse espaço público.
Giancarlo: Queria que tu falasse. Não é à toa que a gente faz teatro de rua. A gente não faz teatro de rua porque a gente gosta...
Hamilton: Não tem espaço no Teatro São Pedro
Giancarlo: ...porque é proibido. Tem uma questão política aí também de querer ir pra a rua. Tem esse paralelo que tu começa a falar de certa forma, de estar aqui também. Quer dizer...
Hamilton: O que todo mundo já falou. Aliás eu quero voltar praquilo anterior que tu tinha perguntado, só isso influencia muito sim o espaço na nossa criação. E eu acho que é o contrário, talvez pela calma, talvez pelo silêncio absoluto às vezes que tem, às vezes também não, às vezes dá máquina da manutenção do lado e GRRRR (imitando o barulho das máquinas). São coisas estranhas, diferentes. Mas acho que o próprio hospital tem uma coisa, digo o ambiente, não direção nem nada. Esse ambiente que a gente buscou para nós influencia um monte. Virou quase uma segunda casa em muitos momentos. No Baile a gente entrava às nove e saía às seis da tarde. Quer dizer, é a tua segunda casa. E também tem aquela coisa. Não precisa ter medo desse ambiente, só respeito. Aos que já passaram por aqui. Aos que estiveram. E eu acho que os que pairam por aqui estão felizes com a nossa presença, muito mais que os políticos ou diretores. Porque essa transformação é necessária pra quem sofreu aqui dentro. Porque ela é quase que, a gente fala de cotas hoje. Mesmo que esses já tenham ido. Mas é pros que estão, pros que tem problemas mentais. Não só nós, querendo fazer loucuras. Mas não é essa forma de tratamento. Essa forma de tratamento está extremamente errada.
Agora voltando ao que tu falou, a questão política é extremamente básica, acho que a Oigalê tem na sua essência que é a questão da tomada da rua. Não do espaço privado. Quando a gente fala hoje em arte pública, não é só arte que é feita no edifício teatral e é público, porque é feito com dinheiro público. Mas só que não é todo mundo, mesmo sendo de graça, que vai entrar. O museu, ele é público, o MARGS. Mas as obras de arte que têm nele e também muitas vezes com acervo público, porque é comprado com dinheiro público, não é tão público assim, porque tem um certo cidadão que esteja com os pés sujos, uma calça mais simples, ele jamais vai entrar. Hoje no São Pedro é de graça o show. Esse cidadão jamais vai entrar. Então, quer dizer, a questão da rua é extremamente importante. As rugas da cidade, são as ruas, e essa atitude política de todos, independente de classe social, independente de partido político, de questão econômica, étnica, racial e religiosa, é igual! Ali, na horizontal, todo mundo pode ver do mesmo jeito. Sentado, de pé, um pouco mais longe, um pouco mais perto, quer pôr dinheiro no chapéu, quer pôr o que for no chapéu. Essa troca. E eu acho que é resultado de que tem uma força maior ainda pelo artista estar ali, presente. Não só o personagem, que a gente tá fazendo. Mas o artista, o ser que faz isso está ali presente e está olhando. Não é uma escultura, nada contra escultura, não é uma escultura, uma obra de arte, que é arte pública também. Existe o convívio dos seres humanos antes do espetáculo, depois do espetáculo, durante o espetáculo. Por isso que eu coloco que teatro de rua é a arte pública de performance, no sentido de performático, não da performance hoje dita, mas sim do artista de performance, o artista tem que estar presente. E ele tem que executar, e ele não só atua. Ele é ele, ele é personagem, ele executa um instrumento, ele costura, ele carrega caixa, ele faz tudo. E em muitos momentos do discurso, ele é ele mesmo. E de convívio, ou seja, tu conviver com esse público. Porque no teatro tu não convive com o público. Tu vai lá, apresenta e vai embora. Não existe um convívio. Ah, talvez no teatro infantil a pessoa vai lá com os personagens dar tchau pra criancinhas. Não, é essa outra relação de convívio que se estabelece. E o único lugar em que isso é possível é a rua. Não tem como. E é uma questão política, que vai contra o capital, que é a questão de tu explorar a arte como moeda, como negócio.
Ilson: Quando a gente fez Era uma Vez, eu lembro de estar entregando o convite para as pessoas e algumas pessoas me dizerem: mas eu não tenho roupa pra ir ao teatro! Mas com que roupa a gente tem que ir? Como é que a minha filha vai ao teatro? Com que roupa que ela vai? Hoje, fazendo o tema de casa, revendo o Era uma Vez, olhei umas três vezes, e a gente acabou levando a rua pra dentro do teatro. Invadimos o palco, entramos de uma forma não convencional, fizemos uma campanha de poluição no meio da plateia. Tudo era palco, tudo fazia parte da ocupação, da nossa utilização. E a rua, ela permite isso de uma forma reta e direta. Tu tá dentro do olho da pessoa, quando ela tá assistindo. Não tá protegido no palco, tu tem uma luzinha que te isola. Não tem. Tu tá falando e a pessoa tá assim, tirando (meleca do nariz).
Vera: É um risco, na verdade. Estar aqui é um risco. A gente pode ser expulso a qualquer momento, o teto pode cair, quer dizer, tudo é um risco. Pode ter louco morto por aí, tudo pode acontecer. Tá na rua fazendo teatro é um risco.
Ilson: É, esses dias a gente estava apresentando em Três Passos a Máquina do Tempo e eu convidei um senhor pra assistir e ele: ah, vocês vão fazer esses teatrinho eu vou pra casa corta as unha! Aí eu disse: Senta um pouquinho na grama! Deixa só começar. Se tu não gostar do começo, vai cortar as unha em casa! Ele cravou a bunda na grama, sentou, assistiu a Máquina do Tempo e eu disse: Cara, vamo cortar tuas unha que tuas unha tão muito feia! E depois que terminou: vai pra casa corta as unha!
Mariana: E tem uma questão, tem uma coisa muito legal da rua, que eu noto que é diverso, é a discussão que a gente sempre tem, vou falar de novo esse assunto na hora da mesa! Mas que a gente vai assistir espetáculo de teatro e são sempre as mesmas pessoas. Porque é elitizado, mesmo de graça, como o Hamilton falou. A classe. É elitizado, tão elitizado que é a classe ou interessados, mas é sempre aquele grupo. Agora na rua, tá eu encontro pessoas conhecidas quando a gente faz em Porto Alegre, porque eu conheço pessoas aqui. Mas é qualquer pessoa. São todas as pessoas. Até quem não tá parado assistindo tá participando do espetáculo, porque tá passando de carro, porque tá em cima, num prédio, porque tá ouvindo aquela bateçada e diz: puta merda! Tô aqui escrevendo um negócio e o cara tá batendo!
Hamilton: Muito menos a classe!
Mariana: Muito menos a classe! Claro, muito menos! Uma, porque a gente é meio excluído da classe por sermos artistas de rua.
Karine: E aí o que acontece com esses teatros mais tradicionais? Vão lá, fazem uma temporada, duas. Na segunda já tem quase ninguém e na terceira não vai ninguém! E acabou o espetáculo!
Vera: Já foi todo mundo!
Karine: Já foi todo mundo que consome teatro. E o quanto a gente não esgota o nosso público. Que até mesmo quem já foi e tá passando: ai, eu já vi. Vou ver de novo! Tem uma menina que um dia terminou o espetáculo e ela olhou pra mim: Eu sei que não acabou ainda. Não fui embora porque eu sei que não acabou. Depois vocês continuam. Já é a terceira vez que eu tô vendo.
Hamilton: Com propriedade.
Karine: Sim, com propriedade!
Paulo: Eu tenho uma outra questão também que é a questão... porque às vezes o teatro convencional de sala tem uma questão de precisar de edital, precisar de uma série de outras coisas que o teatro de rua não precisa. E tem uma coisa também que é uma questão que eu acho um pouco de educação, de hábito das pessoas de assistir teatro. Porque às vezes as pessoas não vão ao teatro não é porque vai só a classe. É porque não tem o hábito de ir ao teatro. Porque nem sabe que existe o teatro. Porque não tem essa informação, entendeu? E a gente tem um trabalho também de educar o povo de ter o hábito de ir ao teatro.
Karine: De gostar.
Paulo: De daqui a pouco não ir só ao teatro de rua porque tá passando. De ir também no teatro de sala porque pegou o gosto.
Mariana: E quantas pessoas vão pela primeira vez? Gente adulta...
Hamilton: Essa noção da sala, ela só vai mudar também quando tu fizer uma coisa no sentido educacional, o teatro ele tem que estar muito mais vinculado à educação e à formação do ser humano.
Giancarlo: O que a gente vê que dá pra melhorar ainda? A relação com os grupos aqui, os cinco grupos, como isso se dá? Ela tá boa? Ela tá ruim? Ela dá pra melhorar? A gente faz trocas? Não faz? O que fisicamente, mas não só fisicamente, na questão artística, uma coisa de trazer mais grupos, de incorporar. Mas aqui, o quanto a gente consegue? O que a gente vê que pode evoluir? O que dá pra falar desse espaço, dessa ocupação, que a gente possa refletir, talvez. Eu acho que esse papo também, e pra mim tá sendo muito forte, aquele dia eu vi isso com as gurias, é que eu acho que quando a gente vai falando, a gente vai se encontrando, vai entendendo também. O que a gente tá fazendo, quem somos nós, qual é o nosso espaço aqui, o nosso lugar nesse espaço, e qual é o valor disso pra gente? Queria que vocês refletissem um pouco disso.
Simone: Pra mim, é parte... como eu me sinto como, ao mesmo tempo que eu sou do grupo, cada vez mais grupo... Eu não estou nas peças, eu não sou atriz do grupo, eu não tô em cena. Eu tô nesse entorno. E é interessante que dentro desses grupos, os cinco que fazem parte desse condomínio, eu já trabalhei com três. Seja formação continuada, na Oigalê, que foi o primeiro, e a partir da Oigalê parece que a coisa se espalhou. Daqui eu fui chamada pra trabalhar no Povo da Rua, pra fazer formação lá também pra uma peça de teatro especificamente. Fui chamada pra trabalhar com o pessoal do Falos, num projeto de formação mais curto. Mas é legal a gente ver como circulam as informações entre os grupos, e como esses profissionais que trabalham como satélites nos grupos podem estar em movimento entre os grupos. Eu sinto que é uma coisa bem lega.
Vera: O Marasca, por exemplo, ele também é dividido. E isso é legal. A gente ensaia aqui e o cenógrafo tá lá em cima fazendo o cenário. Então tu sobe ali e tu olha. Ele não tá em outro lugar, não tem que contratar um caminhão pra trazer. Então tá tudo aqui, isso é um centro de criação.
Ilson: Acaba sendo um centro cenotécnico.
Simone: E ele não é um cenógrafo. Ele é um artista plástico que faz....
Vera: É. Mas enfim, se encontrou e tem um espaço aqui. Tu entra ali no ateliê dele. É ferramenta, é pedaço de cenário de tudo que é grupo. Os artistas vão ali e a coisa vai acontecendo. Eu acho fundamental essa ocupação aqui. Acho que a Oigalê não seria a mesma se não tivesse essa segurança, apesar de toda a insegurança... mas é uma segurança tu ter um espaço. Imagina, onde guardar, onde ensaiar. Que tu tenha a chave, que tu chega e entre e não tem que entrar em edital, pedir por guardinha, nada! Apesar de confusões que já deu, mas é fundamental pra um grupo artístico ter a sua sede. E isso dos grupos, esse condomínio cênico que se formou também é uma coisa incrível. Porque se tu pensar bem, é difícil a gente se entender no grupo. Dentro do nosso grupo já é difícil, já tem desentendimento, tem briga, tem um quer uma coisa, tu imagina cinco coletivos, pra tentar se entender. Por que não é fácil, tem tarefas que não são feitas, e isso e aquilo... e sempre têm os que fazem mais, e por aí vai. Mas a gente resistiu, e eu acho que isso é importante. Essa semana mesmo estavam pessoas de todos os grupos sentados com o Secretário de Cultura. Amanhã mesmo nós vamos vir aqui conversar de novo sobre os projetos e, de alguma maneira, acho que pega junto, pra essa coisa acontecer também. Por isso chamarmos os grupos. A gente veio pra cá, e é uma desolação, e é outra coisa quando tu tá trabalhando aqui e tem alguém batendo tambor ali do lado. Fica mais habitável. Aí tu vai ali e toma um café já, entende? E assim tu vai trocando. Daqui a pouco tu já passa o nome da gráfica que tu fez o material e as trocas acontecem. Naturalmente, não precisa fazer reunião pra troca. As coisas vão acontecendo.
Ilson: Ter uma experiência de condomínio, ao mesmo tempo que o trabalho de grupo, tem um aspecto curioso. Fatalmente, um ou dois vão acabar puxando a estratégia e o posicionamento político e levar pro campo da ação. E aqui não é diferente. Às vezes a gente fica chamando as pessoas pra reunião, chama a pessoa pra reunião, chama a pessoa pra reunião, chama a pessoa pra reunião. Chega uma hora que a tecla não. Não, a pessoa não vem à reunião. Ah, não recebi o e-mail, não isso, não aquilo. Mas não é porque ele não vem na reunião que nós não vamos defender o processo como um todo. A gente continua defendendo esse processo como um todo e acabou que eu enchi meu saco! Tchê, vai lá na reunião, resolve e nos defende. E aquela pessoa que não comparece a dez reuniões vai a uma e diz: não, mas eu acho que nós estamos no nosso condomínio cênico... e pronto! E ela fez o que ela podia fazer naquele momento e o processo vai acabar continuando. Então tem um momento que a gente não pode contar com todos, porque isso é utópico, não é todo mundo que vai fazer a mesma coisa. Isso não acontece em sociedade nenhuma e não vai ser num trabalho com artistas que têm mentes independentes que vai acontecer. Ainda mais artista. “Eu quero ser mais!” Mais complexo. Mas ao mesmo tempo existe uma percepção de que sim, é para o benefício de todos. Às vezes a gente questiona: pô, mas eu tô puxando uma carroça. Tô cansado de puxar esse assunto. A Oigalê é um grupo que tá militando num processo estratégico e político desde o início do processo. Ela nunca se alijou, nunca se separou. Chega num determinado momento que eu vou fazer uma coisa pro meu grupo só. Então vou procurar um espaço pra mim. Mas aí na Oigalê tem um problema político. A Oigalê não quer fazer uma coisa que seja só pra Oigalê. Quer fazer algo que traga um benefício para os outros. Isso tá enraizado no processo. Porque senão já poderíamos ter dedicado toda nossa energia e juntar, buscar um mecenas, alguma coisa com todos os nosso argumentos e conseguir um espaço pra nós. Eu acho que isso é uma coisa que tem que ser colocada de uma maneira bem clara. Porque isso é evidente. Toda a energia que a gente aplica aqui poderia ser aplicado no individual, mas a gente aplica no coletivo, mesmo que às vezes o coletivo não se comporte de uma forma tão coletiva.
Eu coloco essa questão que é importante registrar porque às vezes isso vai cair na mão de outros grupos que estão procurando fazer ocupação num espaço público e acham que todo mundo tem que fazer o tema de casa. Nem todo mundo faz o tema de casa e, no entanto, quem tá fazendo, tá fazendo pra todos. É isso o que eu vejo no condomínio. Quem quer que vá pra reunião, que seja um, que sejam três, está fazendo pelo condomínio.
Hamilton: Tem algo que a gente não falou. A gente falou muitas coisas que eu acho que tem que... eu acho que o próprio sistema, conta a lenda, que a própria Usina da Artes foi baseada aqui no São Pedro. Como se fazer, ocupar melhor o espaço público, como grupos teatrais, de dança. Foi o Caco olhando a história do São Pedro que: Bah, a gente pode fazer aqui. A Usina das Artes foi muito mais ativa nesse sentido, fazendo uma ocupação em cima do São Pedro. Ele falou, inclusive em jornal e tudo mais. Eu acho que no momento que a gente ocupa. é um momento extremamente importante e político também. Que quando a gente faz teatro, a gente não faz teatro só pra nós. Vai daí também de abrir pra mais grupos de teatro estarem aqui. Hoje eu acho que tem que ter mais do que tem. Porque o que tem não ocupa isso aqui da forma como deveria ser ocupado. Eu acho que a gente tira coisas boas, que são essas coisas coletivas. Acho que várias vezes se jogar a toalha no chão nesses doze anos, por ver que não ia dar certo, por ver que não ia rolar a reunião. Reunião atrás de reunião. O próprio cansaço individual da história. E ao mesmo tempo eu vejo assim, ó. Pô, um espaço fechado dois anos. Uma escola quase aqui dentro. Eu não sei como, assim, rearticular isso e reinventar isso também. Eu acho que o projeto vai ajudar bastante nisso, se ele for consolidado. De trazer mais gente que queira fazer mais. E não só ter o seu espaço. Porque eu acho que é extremamente diferente quem quer compartilhar os espaços e quem quer ter o seu espaço. Tá privatizando o público. É totalmente o contrário do que a gente tá conversando. Por isso que eu vejo a necessidade hoje de vir outros grupos e sermos a maioria de quem quer fazer teatro aqui.
Ao mesmo tempo também vejo outra carência que é extremamente enorme é circular melhor. Já fiz quinhentas propostas. Teve uma época que a gente fez o Porta Aberta e acho que agora vai rolar mais isso também, de grupos apresentarem aqui. De ser uma semana, de fazer uma programação conjunta com os grupos daqui. Acho que a proibição de sete anos engessou isso. Mas eu também vejo uma outra coisa que falta, que é como o pessoal lá de São Paulo fala, eles muito se ajudam. Às vezes um cara não vai poder uma semana e um do grupo vai lá substituir o outro. Bah, vamos fazer uma leitura dramática onde tenha um integrante de cada grupo. Outras coisas. Ah, o Hamilton vai dirigir o pessoal lá do Povo da Rua. A Evelise dirige lá o pessoal do Falos & Stercus. Eu acho que falta essa coisa. Fica muito engessado, uma formalidade. Óbvio que cada grupo tem um monte de coisa pra fazer no seu cotidiano. Mas poderia se fazer outras coisas, penso eu, pra caracterizar isso como um coletivo de coletivos artísticos. Senão é só simplesmente um condomínio mesmo. E eu acho que muitos confundiam nesse tempo também, pela minha própria figura, por batalhar por isso aqui, de ser visto como síndico às vezes. E eu acho que é uma batalha histórica de doze anos que esperamos assinar o contratinho por extenso.
Ilson: Mas acho que a gente continua naquela charada. Todo o nosso “poderia” depende de um reconhecimento do poder público dizendo: sim, agora vocês podem. Vocês podem porque aqui está a assinatura. Vamos fazer um termo de cessão por 15 anos, por 20 anos, 50 anos. A gente já tá há doze anos num vai e vem, produzindo. E ainda culpando o tempo da negociação. E todo o “poderia” é a partir do momento que: sim, estou consolidado aqui. Podemos agora começar a trabalhar? Porque a gente quase é clandestino.
Hamilton: A gente ainda é clandestino.
Ilson: Não digo tão porque é, assim: nos mandem embora! “A gente não quer que vocês vão embora.” “Então, nos reconheça.” “A gente também não quer.” É o filho bastardo que não ganha mesada e não tem o nome do pai e é um negócio assim, tu não sabe se tu diz que é ou não é. Então a gente ainda é ilegal. Eu acho que esse é o nosso maior peso. Um vez removido das nossas costas, vai poder abrir possibilidades pra nós trabalharmos e pros outros grupos que podem aderir. Exatamente tanto tempo mantendo esse foguinho aceso, que às vezes vira uma brasa, às vezes vira fogueira, daqui a um pouco vai consolidar. Assim: vai acontecer um acampamento aqui! Então tá, aí os nosso afins devem se aproximar e aí a ocupação muda pra outro estágio. Mas esse é um estágio pós- conhecimento
Vera: Aí todo mundo vai querer.
Ilson: Quando o filho é bonito, todo mundo é pai.





[1] Os espetáculos são La Loba, apresentado no Castelo do Alto da Bronze e A Escrita de Borges, apresentado na Ilha da Casa da Pólvora.
[2] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado.
[3] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
[4] Deus e o Diabo na Terra de Miséria.