Primeira Entrevista - Transcrição - Povo da Rua

 


Participantes:

 Evelise Felizardo Mendes







Alessandra Carvalho



Evelise: Eu não sei qual é o foco do teu trabalho, mas o que eu ia pesquisar é sobre como o espaço reflete na criação. No processo de criação. Não sei se é isso.
Giancarlo: Não. A minha ideia na verdade é mais simples ainda. É a relação do grupo com esse espaço e a importância na verdade disso pro grupo. Como é que isso se estabelece, e principalmente nessa ação direta num espaço público. Não necessariamente espaços privados. A importância desse espaço, mas também como elemento público que não tá sendo usado, que tá jogado, que tá abandonado. E qual é essa relação para o grupo. Como é que isso se estabelece e tudo mais.
Evelise: Sou integrante do grupo desde 2011. Então eu venho acompanhando muito pelo que a Ale fala, o Rogério falava, o Marquinhos também, de certo modo. Então, o espaço do grupo, quando ele começou a ocupação ele vinha daqui, dessa entrada até aqui. E claro, né, à medida o grupo foi sentindo a necessidade o grupo foi se apoderando dos outros espaços. Mas a princípio era só esse espaço aqui. Aqui é onde a gente ensaia, o nosso salãozinho. E virou nosso salão porque é o maior espaço que a gente tem. Então acabou virando nosso espaço pra ensaiar. E quando podia ter apresentação aqui, o espetáculo de sala do grupo, A Ciranda dos Orixás, a apresentação foi nessa sala justamente porque ela não tem essas colunas. Então esse é o lugar que a gente ensaia, a gente teve que botar um chão aqui pra gente poder ensaiar descalço, pra gente poder ter esse maior conforto. Antes a gente tinha um pano preto que cobria o teto também, e com a ação do mofo a gente acabou tendo que tirar. Aqui é muito úmido, então a gente tem que fazer essas adaptações, pequenas adaptações pro grupo poder se acomodar melhor.
Aqui, esses dois espaços: aqui dentro é onde a gente guarda o nosso cenário. Esse é o cenário do mais recente espetáculo do grupo, Os Dez Mandamentos da Capital, aqui tem outra parte do cenário, dessa vez da Caravana da Ilusão e também os figurinos da Caravana. Aqui é o lugar que a gente acha legal de deixar os figurinos e o cenário que a gente ainda tá em uso porque não é tão lá pra dentro, então aqui ainda bate sol. O mofo, existe, mas não é tão complexo como é lá pra trás. Então aqui fica o material que a gente ainda tá em uso, pra não estragar.
Aqui então é o local onde a gente mantém os nossos figurinos desse novo espetáculo. Aqui também tinha. Antes tinha os figurinos da Caravana da Ilusão, e daí como a gente criou esse novo espetáculo e tem dois figurinos pra cada ator, não cabia tudo então a gente colocou os figurinos aqui. Aqui também é o local onde a gente se maquia.
Giancarlo: O camarim, digamos assim.
Evelise: É o nosso camarim. Por isso. Porque aqui bate um sol legal, tem uma luz, digamos assim, não é escuro. Então a gente consegue se maquiar bem, não fica aquela escuridão. Então é muito nesse sentido. Agora me dando conta, falando, esse local a gente... Esses locais que eu te falei, até então a gente usa bastante por isso, porque não tem tanto mofo. É uma questão mais de necessidade do que qualquer outra coisa.
Alessandra: Eu acho só de dizer que também tem uma coisa da proximidade da cozinha. Tem uma coisa que eu acho que o Povo da Rua tem muito, que é a coisa mais caseira, mais família. Isso é uma herança do Rogério, assim. Quando a gente chegou aqui, chegamos eu e o Marquinhos, e tá, eu e o Marquinhos, a gente tirou o grosso. Tiramos todos os entulhos. A sala ela era coberta essa sala aqui onde tem o tabladinho preto. Coberta de entulho até o joelho. E eu e o Marquinhos a gente chegou e tiramos todos os entulhos. Aí o Rogério veio, faxinou também, ajudou a faxinar, mas só quando a gente já tinha tirado os entulhos pesados. Aí ele trouxe o fogão e descobriu a geladeira, que a gente tem até hoje, lá no meio dos entulhos do outro espaço lá, que não era nosso. Porque o nosso era da porta, dessa porta pra cá. O resto não era nosso. E aí essa coisa meio de casa, porque, não sei se a Eve falou, eu considero o São Pedro a minha segunda casa, eu tenho roupa, chinelo, um monte de coisas minhas, pessoais, até figurinos que nem fazem parte do Povo da Rua eu trouxe, sabe, uma coisa assim bem de casa mesmo.
E tem essa coisa mesmo da proximidade da cozinha. Não querendo pular etapa, mas quando a gente fez o projeto com o pessoal da Arquitetura, eu disse pra eles: tem que preservar a cozinha ali. Porque a gente tem essa coisa assim do espaço ser grudado com a cozinha.
Giancarlo: É um grupo italiano, que vive em volta da cozinha, da comida?
Alessandra: É. E tem essa coisa da gente estar, sempre que chega, a gente faz café, come alguma coisa. Dá um intervalo e alguém vai lá e faz café. É uma coisa que ficou, assim. E volto a dizer, o Rogério ele tinha muito isso. O fogão estava sempre limpo, ele limpava o fogão, limpava a cozinha. Então é uma coisa que ficou. Herdamos do Rogério.
Giancarlo: A gente pode voltar a isso, mas eu queria que vocês me explicassem melhor o espaço. A ideia é vocês explicarem qual o significado de cada espaço desses. Estava falando da cozinha.
Evelise: Aqui é a nossa cozinha, como a Ale falou é o local que a gente mais se reúne, a galera adora um café, um chimarrão, adora comer. Adora ensaiar e vir comer. Então eu acho que é o lugar que a gente mais se reúne e depois é ali na salinha. Também tem uma questão, aqui faz frio no inverno e no outono. Na primavera é fresquinho também. Então como é um lugar, aqui é mais fechado, digamos assim, então é uma forma da gente poder se aquecer, digamos assim, e conversar e ter DR que a gente fala, a discussão de relação. E aqui é a nossa salinha.
Giancarlo: As DRs são na cozinha, geralmente?
Evelise: É, são a maioria das vezes na cozinha. Aqui é a nossa biblioteca, digamos assim.
Alessandra: Que tá uma bagunça.
Evelise: Tá uma bagunça. E aí quando faz muito, muito, muito frio a gente se entoca aqui. A gente liga o aquecedor e fica aqui. No processo dos Dez Mandamentos, que a gente pegou o invernão, pegamos o auge, a gente vinha direto pra cá pra conversar sobre o processo de criação, sobre textos. Aqui, o grupo tem muitos fumantes, então a galera aproveita pra fumar o seu cigarro, tomar chimarrão. Então é muito nesse sentido. E aqui é o nosso banheiro. Nosso ilustre banheiro. O banheiro que é colado na sala. Então de vez em quando...
Giancarlo: Tudo externo. O encanamento todo externo.
Alessandra: Esse banheiro a gente reformou, refez ele. Tinha um vaso quebra do e a gente arrumou ele. Tem que arrumar de novo, inclusive. Mas só pra dizer também assim que a fiação parece perigosa, mas já veio aqui o eletricista do próprio Hospital, perguntei pra ele e não tem nenhum fio desencapado. O fio tá tudo certinho, ele disse que não corre o risco de pegar fogo. Porque a gente usa uma luz aqui que é luz de serviço, a gente não usa luz forte. Então é uma eletricidade segura, aprovada pelo próprio eletricista do Hospital. Não tem perigo.
Evelise: Então a gente segue nosso tour pela casa do Povo da Rua.


Giancarlo: Vocês tem algum nome, algum apelido? Ou ainda não surgiu isso ainda?
Evelise: Na verdade seria a Casa do Povo.
Alessandra: É, eu sempre disse a Casa do Povo. Eu acho mais a ver com o Povo da Rua. Na época que a Clarice e o Rogério estavam montando Cartas de um Náufrago, ela colocou o nome da sala Antonin Artaud, porque o trabalho deles tinha a ver com Artaud. E numas de querer conciliar as ideias, o nome do espaço, como um todo, é a Casa do Povo. E o nome da sala é Antonin Artaud. Então ficou assim. Mas eu divulgo mais a Casa do Povo.
Giancarlo: Mas é isso. É a sala de espetáculos, digamos assim, de apresentações tem um nome. E o espaço...
Alessandra: O espaço tem outro.
Evelise: Aqui é o nosso altar, porque como o nome do grupo é Povo da Rua, mesmo que não tenha sido proposital. Que, eu não sei se tu sabe, o nome, logo quando o Marquinhos pensou o grupo era o Mundo da Lua.
Alessandra: Que a Vera até inclusive, integrante da Oigalê, fazia parte.
Evelise: O Mundo da Lua. Aí quando o Rogério entrou ele ficou: o mundo da lua, o mundo da lua... não é o Mundo da Lua. E aí ficou matutando e aí ele: Povo da Rua. Acho que era uma questão muito mais de sonoridade do que necessariamente da religião, porque o Rogério era ateu, né?
Alessandra: É. E da proposta, também de ser teatro de rua. Ele disse: Mundo da Lua, mundo da lua, faz teatro de rua... Povo da Rua! Uma coisa assim, porque o Rogério sempre lidou muito bem com as palavras, então...
Evelise: Enfim, como eu disse, eu não tô há muito tempo dentro do grupo, mas eu percebo que o grupo tem essa pegada sincrética, não digo religiosa, perpassa a religião. Muito mais uma coisa de crença, de sincretismo, das religiões afro-brasileiras e tudo mais. Então acabou atraindo pessoas que, óbvio, são, que tem essa crença. Inclusive eu. Então tem esse altarzinho, que de vez em quando a gente acende uma vela, acende um incenso.
Giancarlo: Protege a entrada...
Evelise: Protege a entrada. E São Jorge que é o padroeiro do grupo. Inclusive tá na logo do grupo Povo da Rua tem uma imagem de São Jorge, estilizada. Então aqui, esse espaço... como a Ale falou, eu já tinha falado, esse espaço o grupo foi invadindo.
Giancarlo: Foi ocupando.
Evelise: A partir do momento que foi surgindo a necessidade, por causa dos espetáculos.
Alessandra: Muito por causa do Rogério. O Rogério que começou, porque quando eles foram montar Cartas de um Náufrago, que é um espetáculo musical com só músicas do Rogério, eles queriam fazer um espetáculo que fosse itinerante, que caminhasse pelo espaço. Que levasse o público pelo espaço. Aí, a gente ocupava só da porta pra lá. Ele olhou esse corredor aqui, cheio de coisa. E ele: olha aqui, um espaço perfeito. Vamos tomar conta disso aqui também. Ninguém estava usando. A chave da entrada é nós que temos. E aí foi ele, devagarinho, junto com a Clarice, tirando, tirando, tirando as coisas, e eles foram pintando, modificando, pendurando coisas. Tinha uma sala que era cheia de livros pendurados. Agora não tem mais. Que era o cenário deles. Então foi em 2005 que ele fez isso. Que ele foi tomando conta do espaço.
Evelise: E aqui é o local que a gente abriga uma parte do cenário. O grupo, o Povo da Rua, ele abriga não só os seus cenários, mas também acaba alguém, um amigo de outro grupo, de outro espetáculo não tem onde deixar o cenário e acabou deixando. Claro, como tem muito espaço, a gente acaba...
Giancarlo: Socializando.
Evelise: É, socializando. E aí, por exemplo, tem o espetáculo A Revolução dos Bichos, que inclusive o Rogério fez parte. Teve um monte de gente que era do Povo da Rua que fez parte, então o cenário tá aqui. E também de outros espetáculos. Então aqui é onde a gente guarda uma parte dos materiais, do cenário.
Alessandra: O Grupo dos Cinco ensaiou aqui por um bom tempo e também, através do Beto e da Sandra, até o espetáculo aquele, Adoração, que a Sandra Alencar montou. Eles começaram o embrião do espetáculo aqui. Então a gente tinha uma parceria com eles. E essa parceria foi muito legal. Porque como eles não tinham grana pra contribuir pro espaço, porque esse espaço demanda. Quer queira, quer não. Consertar uma coisa, ter material pra limpar, água pra beber. Eu propus pra eles assim: então vocês tragam materiais que a gente precisa. E eu lembro que eu sempre dizia assim: ah, meu sonho é ter um tablado de madeira naquele salão, que eu vi o espaço do Caixa Preta, só que o tablado deles é bem mais... o nosso é um reles tabladinho. O deles é de madeira mesmo, tabuão, quero dizer. Aí eu disse: Beto, quero um tablado. E ele: Bah, eu tenho um tablado lá. Vou trazer. E deu certinho ali.
Então a proposta é das pessoas, dos grupos que estiveram aqui, e caso venham. E não posso dizer: dessa água não beberei, venham compartilhar com a gente e, se for pra construir é bem-vindo. A troca é essa. Ou contribui pra conserto do espaço, pra manutenção do espaço, pra melhoria. Sei lá, trazer uns canhões de luz, material pra construção, cimento. E aí o Beto, o Grupo dos Cinco, contribuíram muito nessa questão. E aí tem o cenário do Pois é, vizinha, o antigo cenário aqui. Tem o cenário da Revolução dos Bichos, tem o cenário do Grupo Nômade. Eles já tirara uma parte. Ficou um bom tempo aqui. O Ed era do grupo, que era do grupo, fez parte da montagem do Nômade, e era só uma temporada do espetáculo, depois fecharam as portas e deixaram um bom tempo o cenário deles aqui. Doaram algumas coisas pro grupo, em troca de cedência do espaço: cortinas, umas coisas que a gente usa hoje. Então sempre teve essa troca. Com o Grupo Nômade, com o Grupo dos Cinco, a troca foi muito legal. E com a Débora também. A Débora contribui não só com o grupo, mas com os grupos do São Pedro, tu deve saber bem, de outra forma. Ela é uma pessoa bastante sensível, preocupada, a Débora Finochiaro. Preocupada, ela sempre fica: ai, Ale, vocês não conseguiram ainda! Que coisa, né? Vocês tão na batalha há muito tempo. É uma artista, é uma colega, uma parceira que reconhece a nossa luta aqui.
Evelise: Tem a história dessa porta, né.



Giancarlo: Conta a história da porta, então.
Alessandra: A história é a seguinte: ela dá pro pátio do prédio 04, que no prédio 04 acontece o Ateliê de Criatividade dos internos, dos moradores do São Pedro. Teve uma época que a gente prendia assim, porque a gente não tem a chave. Ela não encaixa bem, pode ver. A gente prendia ela só com algumas coisas encostadas. E a gente guardava um monte de figurino aqui de outros espetáculos Pedro Malasarte, do Mistério das Quatro Chaves, tinha um tabladão aqui também e os figurinos ficavam aqui também, porque o que a gente fazia: quando a gente estava aqui, a gente abria a porta e arejava os figurinos. Pois bem. Começou a acontecer que eu chegava aqui. Eu ou qualquer outra pessoa, quando via, a porta estava um pouquinho aberta, e roupa de interno aqui. Então o que que eles faziam? Eles chegava aqui, tirava a roupa, botavam o figurino e saíam. Então a gente tá com alguns dos figurinos desfalcados de outros espetáculos. Porque aconteceu umas três ou quatro vezes. Aí eu falei, avisei: não, a gente vai ter que prender essa porta. Fui na manutenção, pedi. Eles colocaram do lado de fora um tapume colorido pros internos não se ligar mais que dá pra entrar. Porque a gente continua não conseguindo trancar isso. Por isso que eles fizeram essa mão, e funcionou até agora.
Evelise: Então também aqui é uma parte do cenário dos Sete pecados do Capital, espetáculo do grupo. Tem vários cenários e aqui é a nossa oficina mecânica, o que é muito legal. Às vezes tem que consertar alguma coisa, ou no caso se a gente tem que contratar um cenógrafo que não tem um espaço pra construir o cenário, pode vir aqui e fazer tranquilamente. A gente tenta organizar o máximo, mas é difícil. Mas costuma ser o espaço preferido dos meninos do grupo. Adoram mexer.
Giancarlo: Sim, tem de tudo um pouco.
Evelise: Sim, e aqui, a gente gosta, procura guardar madeira, esponja, isopor, caso a gente precise, então a gente acaba deixando tudo aqui.
Alessandra: Quem começou muito essa oficina aqui foi o Naco. O Naco, durante essa montagem do Cartas de um Náufrago, e da Ciranda, ele se aproximou do grupo. E ele é artista plástico. E ele queria muito um espaço pra fazer um ateliê. E ele fez dessas duas salinhas o ateliê. Então aqui era a oficina, ele que montou essa oficina, e aqui era o ateliê dele, que ele ficava pintando. Também por causa da claridade. E respeitando também o espaço do grupo. O Naco foi uma pessoa também que contribuiu muito pra consertos do grupo, fundou junto comigo a Associação, me trouxe essa ideia, fomentou muito, na época da Ciranda, e agora ele tá morando em Floripa. Então ele era um grande parceiro, é isso que, da história desse espaço, que apesar de às vezes as associações não serem muito felizes, é o risco que a gente corre, teve muitas associações felizes. Que contribuíram muito. E esse espaço aqui, se eu desse um nome ia ser Sala Naco.
Evelise: Aqui a gente tem o banheiro que acaba não utilizando, mas é um banheirinho. A gente acha que provavelmente essa parte do espaço, desse pavilhão, fosse um lugar para as pessoas dormirem.
Alessandra: Acho que quartos. Tem lugares que dá pra ver bem que é separadinho os quartos e alguns tem ligação a porta. E dizem também, segundo, porque eu aprendi um pouco de arquitetura. Pode ver, ó. Aqui nessa sala, por exemplo, a parede é bem mais fina.  Então, essa sala aqui era uma sala só, esse corredor era um corredor só. Porque dizem que esse prédio foi terminado de ser construído praticamente nos anos 60, 50. Então dá pra ver que na construção, a diferença daquela parede ali, que é grossa, pra essa aqui. Então quando eles inauguraram o Hospital, essa parte aqui nem era usada. Eles foram usar muito tempo depois. Era um corredor só, precisava de mais espaço, aumentou o número de loucos, época da ditadura. Então foi construído um espaço de enclausuramento para as pessoas consideradas loucas. A gente acredita, eu imagino isso, que eles construíram um monte de quartinhos pra fechar as pessoas e lá deveria ser um laboratório, por que tem pia. Um laboratório, uma enfermaria.
Giancarlo: E aqui vocês guardam o figurinos, adereços.
Alessandra: É uns figurinos que é meio assim, que vai que precise, né. Não é bem figurino, assim.
Giancarlo: Sei. Tecido...
Alessandra: É, umas coisas mais pra...
Evelise: E aqui um pouquinho melhor...
Alessandra: Esses aqui são figurinos do Pedro Malasarte, do Mistério das Quatro Chaves, e da Ciranda aqui.
Giancarlo: A ideia não é avaliar o quanto está organizado ou não, e sim a importância.
Alessandra: Ufa!
Giancarlo: Depois eu quero que vocês falem um pouco exatamente sobre isso: sobre a importância desses espaços pra guardar figurino, pra guardar instrumento aqui como eu tô vendo.
Evelise: Aqui é mais a parte de instrumentos. Tem aqui uma parte do cenário da Serpentina, o trabalho que eu dirijo, mas aqui é pra ser mais de instrumentos. Inclusive uma vez a gente acabou pirando na ideia de, se a gente pudesse criar um estúdio aqui, pra gravar as músicas do grupo e tudo mais. É uma ideia que a gente acaba pirando bastante. Quem nos ajuda muito a manter é o Urso. Que também é uma pessoa que passou pelo grupo, fez a Caravana, e ele é todo meticuloso. Se tá um pouco bagunçado, é porque ele não veio. Ele adora organizar.
Giancarlo: Essa ideia do estúdio é interessante.
Evelise: É. A gente queria muito fazer um estúdio. Porque o grupo tem a sua pegada musical, muito pela herança do Rogério. Então a gente sempre desejou gravar um CD do grupo, gravar as músicas do grupo. Gravar as músicas do Rogério, inclusive. É uma ideia, é um desejo nosso de um dia aqui ser o nosso estúdio.
Alessandra: Inclusive quem arrumou esses instrumentos foi o Urso né. Ele que trouxe pra cá todos os instrumentos de percussão, tapou, deixou tudo organizado. E aqui é mais materiais. Tipo essas cadeiras a gente ganhou também de um parceiro, então a gente tem umas cadeiras pra caso precise. Esses ferros aí é tudo do pessoal do Grupo dos Cinco, e da Débora Finochiaro.
Giancarlo: E aqui vocês tem ligação com o espaço do Neelic.
Alessandra: Sim, essa porta tá do Neelic. Aqui a gente tem um caixote. Quem incomoda a gente tranca aqui dentro e deixa aqui de castigo.
Giancarlo: Inicialmente falar a importância desse espaço para o grupo. Se isso tem importância ou não, o que bate pra vocês, estar aqui dentro do São Pedro. Porque estar dentro do São Pedro? É bastante coisa.
Alessandra: Eu vou puxar um pouquinho assim, antes da gente vir pra cá. Quando eu entrei no Povo da Rua, o espaço era lá no Estaleiro Só. E o que acontecia lá? Lá era um espaço que a gente pagava aluguel e que a gente era assaltado de vez em quando. Tinha uma vila bem próxima, colada. A gente tentava um papo, uma integração. Fazia festa, contratava o pessoal da vila pra cuidar dos carros, e as festas enchiam de gente. Inclusive outro dia encontrei uma menina. Uma menina, uma mulher, conhecida e: ai, e as festas do Povo da Rua. Ela lembrava daquelas festas daquele tempo. Bah, mas tu é minha contemporânea, né. Aí ela disse: ah, as festa eram muito legal. Bombava. Porque assim, o Estaleiro Só, pra quem não sabe, é um espaço na beira do rio. Então é muito atraente pra fazer uma festa. Então a gente fazia festa pra arrecadar grana pra pagar o espaço. E acontecia que, como a gente faz teatro de rua, a gente deixava as coisas dentro do espaço e ia pro pátio. Só que o espaço lá era muito grande, muito grande mesmo. Até a gente chegar na rua, a gente atravessava dois salões. E um dia a gente estava ensaiando lá. E a gente era assaltado depois das festas, principalmente. O pessoal pegava as bebidas que sobravam. E um dia a gente estava ensaiando e quando a gente entrou nossas bolsas tinham sido assaltadas. Aí o Marquinhos participava dos encontros do Movimento de Teatro de Rua de Porto Alegre e ficou sabendo aqui do São Pedro. E chegou e disse pra nós: tô de sabendo de um espaço, lá do São Pedro, vou falar com os grupos e vou falar com o IEACEN.
E aí ele fez todo o trâmite, conversou com o Hamilton, com o pessoal do Falos. Não sei bem na época, porque eu não acompanhei. E falou com a Eva Schul, que na época era diretora do IEACEN. Quando eu vim pra cá, eu fiquei fascinada. Uma por causa disso que a gente estava falando. Porque tinha outros grupos de teatro. Como eu venho de uma escola autônoma de teatro, não fiz faculdade, eu queria muito esse contato com outras pessoas de teatro. Porque eu vivia um pouco galgando, tentando. Mas eu não era do meio artístico. E aí eu disse: poxa, que legal! Tem outros grupos pra se integrar. Um espaço seguro com uma guarita ali, porque eu estava traumatizada por causa dos assaltos. E sempre chegava lá no Estaleiro fazendo: oi, tudo bom? Com licença. Permissão, aqui. Não me rouba, por favor, sou uma ralada que nem tu. E aqui não, aqui era um outro ambiente. Embora todos esses anos de altos e baixos, por que o convívio, né, como todo casamento, toda relação, tudo tem altos e baixos. Quando eu entrei aqui eu fiquei: nossa! Eu tirava rindo os entulhos daqui. Feliz. E pensando: agora a gente tem um espaço, vai vir mais gente integrar o grupo, colaborar, a gente vai poder montar...
Giancarlo: Isso foi em?
Alessandra: 2003. Junho, maio de 2003. Eu lembro que foi início do ano. Logo após umas últimas mostras do teatro de rua, do Movimento. E, nossa, eu feliz da vida! E na época, no grupo, integrava umas doze pessoas. Porque a gente vinha do espetáculo O Mistério das Quatro Chaves, que era doze pessoas. Alguns eram, outros não eram do grupo e tal. E do Pedro Malasarte também, que a gente montou O Mistério das Quatro Chaves e o Pedro Malasarte, os dois de rua, que eram seis pessoas. Muita gente do Mistério foi também pro Pedro Malasarte. Oitenta por cento das pessoas não quiseram ficar no grupo por causa do São Pedro. Ficou eu, o Rogério e o Marquinhos.
Eu estava feliz da vida, eu achei ótimo. O Rogério já arrumou aqui a cozinha, já fazia chimarrão...
Giancarlo: Mas não quiseram ficar por causa do espaço, tu acha?
Alessandra: Por causa do espaço. Foi assim, uma coisa, não foi declarado, que nem: estamos saindo. Foi uma coisa gradual: bah, não me sinto bem aqui. Ah, tô com outros projetos. Foi uma debandada à francesa. Lenta e gradual. O Mistério das Quatro Chaves não demos continuidade, por causa de vários problemas internos, o Pedro Malasarte também. Algumas coisas assim de crise pessoal. E aí, tá, então vamos! Temos um espaço aqui, vamos montar outras coisas! A gente tem esse espaço aqui pra montar. É por isso que eu sempre digo: Se não fosse o São Pedro, o Povo da Rua tinha terminado. A gente montou, o Rogério nos estimulou a montar Cartas de NáufragoCartas de Náufrago eram músicas que o Rogério fez nos anos 70, 80. E em função dele estar num romance com a Clarice, e essas músicas falavam muito da questão da existência, e ele e a Clarice tinham essa conexão, ele logo se estimulou e montou esse espetáculo, com o dinheiro do próprio bolso. E aí no seguinte a gente montou A Ciranda dos Orixás, que foi aqui dentro. Que foi com o dinheiro do próprio bolso, que era do Povo da Rua.
Giancarlo: Apresentada aqui, os dois espetáculos?
Alessandra: Os dois espetáculos. O Cartas de Náufrago ficou... eu era bilheteira, não recebia cachê.
Evelise: Só que Cartas de Náufrago não é considerado...
Alessandra: Povo da Rua. Eu fazia muito em parceria pelo Rogério, pelos amigos que faziam parte. Aí a Ciranda dos Orixás foi pelo Povo da Rua. A gente ficou ensaiando aqui no Hospital durante meses a fio. De fevereiro a julho, agosto. Todos os domingos. Porque como era um espetáculo que não tinha grana, a gente fazia num horário que ninguém tivesse compromisso. Então era num domingo, final de tarde. E aí em agosto, setembro. Eu lembro que era na época do Porto Alegre em Cena. Apresentamos aqui por durante três meses, ficamos em cartaz. Em paralelo, estava em cartaz o Caixa Preta, com Hamlet Sincrético. E isso que era o barato aqui. A gente começava às 19h, e eles começavam às 21h. a gente encaixou os horários justo pra poder ter esse ar de centro cultural. E eu achava muito legal. Os dois eram temas semelhantes. Hamlet Sincrético trazia a questão dos orixás e a gente falava dos orixás. Então tudo está no seu, como é a frase do espetáculo?
Evelise: Tudo está encadeado.
Alessandra: Tudo está em movimento. Não sei se foi tu, quem é que trouxe essa frase. Então tinha muito a ver. Eu e o Sílvio a gente combinava: olha só, no final do espetáculo falem do nosso espetáculo, no final a gente fala do de vocês. Então tinha isso, as pessoas vinham pra cá e super se emocionavam com o lugar, gostava, aí perguntavam dos outros grupos. Ficavam conversando com a gente. Ficavam depois da apresentação. Às vezes a gente tinha que fechar a porta por causa do outro. Os amigos ficavam aqui conversando. Vamos fechar a porta pra deixar eles começarem o espetáculo deles. Porque começava no pátio. Então isso foi uma coisa que nossa! Brilhava os olhos de quem estava aqui.
E vocês (Oigalê), usavam mais de manhã. O Neelic usava mais à tarde, de manhã no sábado, o Falos usava mais à noite. Então essa troca com outros grupos foi uma coisa que eu percebia: olha só, uma oportunidade que a gente tem de aprender com outros grupos, de trocar, de criar uma força, de concentrar aqui. Uma luta que vai ser pro país todo. Eu acredito que o espaço físico de um grupo é a principal ferramenta de inspiração, além dos seus desejos internos.
Evelise: É obviedade o que eu vou dizer, mas enfim, é uma questão de registro. É evidente que o espaço mantém o grupo. E até eu estava me dando conta agora, a gente conversando, mostrando o espaço. Que à medida que os anos vão passando, e os espetáculos, as obras vão sendo criadas, tu precisa de um espaço pra manter o material. O cenário, o figurino. Porque o grupo se faz de repertório, hoje a nossa batalha é essa, de ter um repertório. E então nesse sentido, porque onde é que tu vai guardar o material. Porto Alegre hoje tem muito pouco espaço pra demanda de grupos de artistas de teatro. Então fui me dando conta disso. A questão do repertório de um grupo. E pra tu ter um repertório, tu precisa de lugar pra manter o cenário, o figurino, o material. E o local? Onde tu vai deixar. É muito importante o espaço. Ainda mais a questão pública. Enfim, eu tenho refletido muito sobre essa questão do público/ privado. Porque a minha ideia, como eu tinha te falado, da pesquisa. Eu ia escrever um projeto pro Fumproarte e aí eu soube que o Gian escreveu e então tá... tudo bem, fica pra próxima! Mas era investigar como é que o espaço interfere no processo de criação. E aí eu tenho pensado muito sobre isso. Como é que esse espaço interfere na nossa criação. Em termos de linguagem, de investigação, de relações. E aí talvez tu não acredite nessas questões metafísicas, tu parece ser tão materialista! (Risos) Mas um dia eu e a Ale, a gente conversando sobre isso, que estar no São Pedro é quase que buscar uma cura para as nossas loucuras. Às vezes eu fico pensando: tá, eu não tô aqui à toda. E as pessoas que vêm parar aqui não tão à toa. A gente tem alguma coisa, a gente precisa curar na nossa insanidade que eu não sei o que é que é. A gente ficou pirando. Tu tem que estar aqui. Não que ninguém seja obrigado. Ninguém é obrigado, mas não é por acaso.
E às vezes esse ambiente doentio acaba interferindo nas relações. É o que eu sinto. No nosso processo dos Dez Mandamentos. Tem uma coisa, uma vibração que tu tem que saber lidar, senão tu enlouquece. É estranho dizer isso, mas tu me entende, né Gian? É, eu não sei te dizer o que é, mas é um ambiente, é uma energia que tu tem que estar sempre indo contra. Tu tem que estar tentando ativar outras energias pra não deixar a energia do Hospital te sugar. Eu acredito em Espiritismo, eu acredito nessas coisas energéticas.
Giancarlo: Desculpa, acho que não entendi. Tu acha que tem uma energia pesada?
Evelise: Tem uma energia pesada, que tu sempre tem que estar...
Giancarlo: Mas então isso influencia diretamente no trabalho.
Evelise: Com certeza. É nisso que eu quero chegar.
Alessandra: Um amigo meu, bem espiritualizado, ele disse assim: Ale, tu nunca vai conseguir limpar o espaço de energias pesadas. O que vocês tem que fazer é trazer uma energia legal. Pra ir aos poucos compensando. E sempre te fortalecer muito antes de ir pra cá. Porque não dá pra negar. Aquela coisa de: as paredes falam. Sim. Nessas paredes tá plasmado muito sofrimentoE muito desejo, muito sonho, muita criatividade também. Porque essas pessoas que estiveram aqui, que passaram por aqui, elas não eram monstros. E o que a gente cria das pessoas que ficam transtornadas psicologicamente é que elas são uns monstros. Segundo alguns terapeutas, e acho que o Vitor Pordeus pode, sei lá, ter uma opinião diferente. Segundo uma terapeuta amiga minha, ela diz que quando uma pessoa pira, ela chega no máximo da sua genialidade. Ela vê que isso aqui tá tudo errado e ela pira. Como é que as pessoas estão aqui, tudo como robozinho? Ela pira! Então não são pessoas do mal. Eu nunca tinha visto nada, na minha vida. Depois que eu vim pro São Pedro, eu vejo pessoas passarem e que não são nós, de carne e osso, que respiram e sangram. Então não dá pra negar, é aceitar, compreender, estar consciente disso e estar sempre atento, porque a qualquer momento eu posso cair nesse ar pesado, que não é do mal. É um fato.
Giancarlo: Um fato histórico.
Alessandra: Um fato histórico que a gente tem que aceitar.
Evelise: Concordo plenamente com o que a Ale falou, e aí pensando. Porque na Caravana eu entrei pra substituir, eu não participei do processo de criação, mas os Dez Mandamentos sim, a gente criou juntos. E a história da Tiana, que é um bando, que quer buscar a Terra Prometida, e daí nisso surge uma líder, que diz: vou buscar, vou buscar. E eles atravessam o Mar Vermelho, todo mundo acompanha e aí no fim ela é tida como louca. E tem uma cena do julgamento, que é a última cena, a penúltima cena. E aí o juiz, que a Ale faz, dá o veredito: você será arquivada nos porões da cidade. E ela é tida como louca, que ela escutou vozes de Deus e então acho que sim, acho que de certa forma, pensando no espetáculo isso está presente. E acho que fazer teatro de rua numa sociedade como a nossa é loucura a nossa. Que pai e que mãe quer seu filho. Quer te ver no Teatro São Pedro, quer te ver na Globo. Teatro de rua? Uma coisa de bagaceiro, de louco, de marginal. E ainda é. Então acho que sim, está presente esse tema, esse espaço.
Giancarlo: E essa relação, aproveitando isso que tu fala, do teatro de rua, tem uma relação política aí do fazer teatral. Ela talvez esteja próxima, ou não dessa ocupação de um espaço público ocioso. Será que tem ligação? É porque a gente faz teatro de rua que a gente tá ocupando aqui? Ou qualquer grupo poderia fazer isso? Tô levantando isso... independente do que eu acho. O que vocês acham? Tem uma relação política ou vocês poderiam também estar alugando um outro espaço que também estaria com a mesma relação?
Evelise: Acho que tem sim uma questão política. Acho que a questão, não precisa fazer só rua, né. Até porque eu acho que se a gente pudesse estar apresentando aqui dentro, eu teria desejo de apresentar, de criar uma peça aqui dentro. Mas a rua, essa questão do que é público. E qual é o meu direito enquanto cidadão? Isso é uma coisa que eu venho pensando muito. É uma questão muito maior de uma política pública, do Estado, a gente tem esse direito. A gente tem esse direito enquanto artista de ir e vir, e apresentar onde a gente quiser sem precisar de autorização. A gente tem direito enquanto cidadão ocupar os espaço públicos que espaço público é justamente por isso, porque é pra ser do público.
Então sim, eu vejo uma relação muito forte. Porque não é à toa que os grupos que ocupam aqui a maioria, já fizeram rua. A Caixa Preta já fez rua, várias vezes, o Falos & Stercos, vocês. O único talvez seja o Neelic que ainda não. Mas sim, eu vejo essa relação muito forte. Não sei se tu vê?
Alessandra: Eu só queria comentar que os espetáculos de sala que a gente fez aqui, os ingressos eram os mais baratos. E eu fiz uma provocação na Ciranda dos Orixás, porque as pessoas que mais frequentam... é o povo que frequenta os terreiros. E o terreiro que eu frequento, o pai de santo distribui cesta básica. Ele se organizou com o governo federal, o governo federal repassa pra ele e ele distribui pro pessoal que mora, que frequenta o terreiro dele e que mora em torno. E então, quando a gente montou a Ciranda, eu fiz uma provocação que pedreiros e empregadas domésticas tinham desconto de 50%, além de estudantes e assinantes da ZH, numa busca de querer justo isso assim. A arte é pública. Nós estamos cobrando um ingresso que é de ajuda pro grupo, de ajuda pro espetáculo, porque a nossa ideia aqui não é ganhar dinheiro, é recuperar a grana que foi investida, pra poder ter esse espetáculo e para manter o trabalho. E o Cartas de Náufrago também não era diferente. O ingresso era bem acessível, bem mais barato que os outros espetáculos. Até diziam: nossa, muito barato esse ingresso. Se os outros estavam cobrando 20, a gente cobrava 10. A gente cobrava a metade e com desconto pra estudantes, etc e tal. Com certeza a coisa tá ligada uma na outra, só que a ficha começa a cair depois. De estar num espaço público, de também pensar: tá, mas a rua também é um espaço público, só que não tem teto, não tem parede. Na verdade a ficha começou a cair depois. Pra mim, por exemplo. Quando eu entrei no grupo, eu era meio fora da questão política do teatro. Eu fazia teatro porque eu queria fazer teatro. Agora o meu fazer teatro envolve outras coisas. Envolve uma questão política, ideológica. Mas a ficha começou a cair depois, quando a gente ia pra rua. Pô, a gente tá num espaço público né. E vem de um outro espaço público. E da questão também de estar no espaço público fazendo arte. Então só pela questão de estar fazendo arte a gente acredita que isso já é um retorno de interesse público, cobrando ou não ingresso, passando ou não o chapéu. Eu acredito que isso se construiu muito, na minha visão, na minha cabeça, com certeza na cabeça do Marquinhos e do Rogério isso já estava estabelecido, porque eles, na conversa... eu aprendi muito com eles, essa visão, essa consciência de um espaço público para arte.
Evelise: E aí pensando a situação que essa batalha pelo comodato, a gente, enfim conseguir finalmente uma posição oficial, por escrito, do governo pra mim é muito mais do que pra eu, como artista, posso fazer o que eu quiser. Não é isso. É justamente pra poder devolver pro público o que é dele, porque ele tem esse direito de transitar por aqui, ter um espaço cultural. Porque os espaços culturais de Porto Alegre tem que ser só no centro ou Cidade Baixa? Menino Deus, no máximo? Porque não pode ser na periferia? Então eu vejo essa batalha não só pra mim, como artista, integrante de um grupo que ocupa aqui, pra me dar certeza que eu vou ter um espaço. É pra poder proporcionar para o público, principalmente do entorno esse acesso à cultura. Porque o que aconteceu? Ano passado a gente estava montando a peça e aí uma equipe de tv, acho que da TVE veio filmar aqui, fez uma matéria com a gente. Aí deu todo um bolo com o diretor, que não queria deixar a equipe entrar, e só deixou com a condição que a gente não falasse da ocupação, que era no São Pedro nem nada. Isso é muita sacanagem, a lógica que tu está agindo com os grupos é a mesma lógica que a lógica do hospital psiquiátrico, a lógica tradicional de exclusão, de exclusão da sociedade.
Alessandra: Exclusão da sua própria responsabilidade, interferindo na sociedade.
Giancarlo: Tem uma lógica de oitenta anos atrás, setenta.
Alessandra: Cem anos atrás.
Giancarlo: Cem até não digo porque não tinha hospital há cem anos atrás.
Alessandra: Tinha sim. Foi em 1884.
Giancarlo: Ah, sim, ele começa antes. É verdade. Mas enfim, era essa lógica.
Evelise: E a lógica ainda persiste.
Giancarlo: Pega os esquisitos, os estranhos e tira de circulação.
Evelise: E o que faz é muito pior, porque não nos tiram e fica essa coisa “não caga e não desocupa a moita”, que a gente brinca. Não toma uma posição. Então nós somos os invisíveis. Isso é uma grande merda, porque nem gente da classe artística sabe que a gente está aqui, que deveria saber. E porque não sabe? Porque a gente não está podendo apresentar espetáculo, ministrar oficina, oficialmente. A gente até ministra, mocoseado, mas não deveria. Não pode sair divulgando.
Giancarlo: Não pode botar cartaz.
Evelise: Isso é uma puta sacanagem com a própria sociedade, não é com a gente. Se tirarem daqui, a gente vai batalhar outro espaço. A gente vai invadir outro provavelmente, mas é com a própria... e aí em questão, pensando mais profundamente do que é público e do que é privado. Não é pensar só no nosso umbigo, enquanto grupo, enquanto artista, mas é pensar nesse retorno pra sociedade. Eu tenho muita vontade de ministrar e vejo em todos do grupo, do Povo da Rua, esse desejo de ministrar oficina. Poxa, adoraria montar um espetáculo aqui dentro, e fica nessa coisa de poder e dá uma agonia, sabe? Sem ter medo de ter uma posição oficial. Nem que seja pra dizer: Olha, vocês saiam. Tá. Porque daí a gente vai poder brigar, ocupar. Mas fica nessa coisa é, não é. Ficar nessa ladainha é que não leva a lugar nenhum. E o governo do Estado, em âmbito da Secretaria, claro, agora as coisas estão melhorando, mas até então não se dá conta disso, que é pra sociedade, retorno pra sociedade. E me dá uma agonia perceber essa falta de união da “classe artística”, assim que a gente fala, entre aspas, que é pra ocupar os espaços. O Teatro São Pedro, é nosso, é público, é tratado como privado. E assim a gente tem vários exemplos de lugares que são tratados como privado e são públicos. E porque são tratados assim? Porque as pessoas não tem colhão de chegar e todo mundo acaba aceitando: é, pois é.
Me agonia um pouco essa coisa de passar esse situação de Porto Alegre, que fica assim: ah, vamo, não vamo. Ninguém põe o pau na mesa, de fato. Então pra mim essa ocupação é pra sociedade, não é pra gente. E deveria ter mais espaços descentralizados em Porto Alegre. Aquele Centro Vida, que eu me criei lá na Zona Norte, me criei indo lá. É uma vergonha o estado que tá aquele espaço. Um puta espaço, podia rolar várias coisas e tá sendo tratado como qualquer coisa. Essa falta de consideração com os equipamentos públicos da cidade. E eu falo com uma certa propriedade porque eu fui estagiária do Governo do Estado, primeiro do Teatro de Arena e depois do IEACEN, e o Restori tentou. Não sei como tá a situação dos galpões culturais, de ocupar os espaços ociosos do Estado e bom, eu acompanhei de perto. A gente mapeou vários, acabei tendo que sair porque me formei na graduação. Mas tu vê a burocracia é engessado.
 Giancarlo: É uma vontade política, na verdade.
Evelise: Um manda pra outro, que manda pra outro, que manda pra outro. E fica andando que nem barata tonta.
Giancarlo: Diz que agora dia 28 de janeiro de 2014 vai, né. Vamos ver.
Alessandra: Tem uma coisa assim que, uma coisa que mantém os grupos aqui é a boa relação que nós temos com os funcionários. Se tu conversar com os funcionários, a grande maioria, se tu botar assim, 80% super nos ajuda aqui. Super concorda e acha digno nós estarmos aqui. Já teve muitos diretores também. Só que eles, só que como o Marcelo, eles se deparavam com o engessamento e com a falta de interesse político pra fazer as coisas de fato. Os interesses desses cargos públicos são outros. E não tem o interesse público. Eles são eleitos e levado lá pelo povo, mas quando chegam lá a gente sabe o que acontece. Então eu acho que a continuação desses dez anos que o Povo da Rua tá aqui, se dá muito pela relação com os grupos, os outros grupos de teatro, e os funcionários.
Giancarlo: Eu ia perguntar isso. Eu estava fazendo a conta. São dez anos, décimo primeiro em 2014. Queria que tu falasse só um pouquinho de novo dessa trajetória, quantos espetáculos vocês montaram, o que mais vocês construíram aqui, oficinas. Tentar lembrar um pouco isso pra que fique registrado. Claro, não precisa ser tão preciso. Tu falaste nos primeiros espetáculos que eram
Alessandra: A gente veio com dois espetáculos pra cá: Mistério das Quatro Chaves e o Pedro Malasarte.
Evelise: E Os Sete Pecados?
Alessandra: Os Sete Pecados estava desativado já. Ambos em ativa total. Inclusive logo que a gente veio pra cá a gente foi e fez a inauguração da gestão cultural na Usina do Gasômetro. Eu me lembro que a gente enchia o saco do Caco dizendo que o Povo da Rua não tinha interesse no Gasômetro, não tinha interessa na sala. Achava que outros grupos tinham que ir pra lá. Nós já tínhamos o nosso espaço aqui. Mas eu queria que ele demarcasse aquela praça não só como espaço do teatro de rua, do teatro de rua também, mas pra outras manifestações de rua: música, dança, teatro. Que até depois teve a Usina das Artes, que até depois teve a Usina na praça. O povo da rua inaugurou a gestão cultural com a apresentação do Mistério das Quatro Chaves ali, bem na praça. Então nós viemos com dois espetáculos pra cá, e depois a gente montou, o Rogério montou Cartas de Náufrago, que era um espetáculo dele, não tinha vindo com o Povo da Rua, depois a gente montou a Ciranda, que era o Povo da Rua, ensaiamos e montamos para esse espaço. Depois foi difícil até ir a outros lugares. Depois em paralelo aconteceu oficinas de teatro que o Marquinhos deu, que eu dei. Durante três anos eu trabalhei em uma oficina de capoeira com as crianças e os adolescentes da Vila Cachorro Sentado, que é um anexo praticamente do São Pedro. Historicamente, o terreno da Vila era do São Pedro, foi ocupado.
Como eu fiquei sabendo que volta e meia eles eram ameaçados de ser despejados, eu pensei: há, vou ali reforçar eles. Nós estamos aqui pronto pra continuar, eles também, vamos nos juntar. E aí durante três anos eu dei oficina de capoeira através da descentralização de cultura, aqui dentro. Projeto da Prefeitura. Eu tinha autorização do diretor do Tailor na época, de entrar com essas crianças no Hospital, porque não era bem assim, eu ia por dentro do pátio lá, no portão lá do fundo, que dá pra vila. Entre o Hospital e a Vila. Eu ia pôr esse espaço que só funcionário tem acesso, passava por ali, pegava as crianças, me responsabilizava por essas crianças com a família, pra entrar aqui no Hospital.
Giancarlo: Sim, com todo o preconceito que há também.
Alessandra: Conversava com a família, conversava com as crianças, que elas não poderiam sair correndo. Todo um trabalho psicológico e educativo de respeito a essas pessoas que estavam aqui. Porque criança não tem essa questão de valores. Entrava com eles, caminhava por todo esse corredor, que é um corredor grande. Fazia um L com eles aqui. Negociava o uso do campinho: se vocês se comportarem, fizerem tudo direitinho, libero meia hora vocês jogando futebol ali. E eles entravam aqui e fascinavam, por que a casa deles, às vezes a casa deles toda era essa cozinha. E eles diziam: bah, profe, parece uma casa! Tem sofá, tem fogão, tem geladeira. Eles se atentavam muito a isso. E adoravam, super funcionou. Faziam bagunça, claro, como toda criança. Faziam bagunça, quebravam instrumento, quebravam coisa. Mas foi muito prazeroso. E depois dessas oficinas eu dei uma outra oficina, porque a gente participou da mostra de Santos e depois dos encontros da Rede e eu vi aquele cortejo da Antropofágica, não lembro que grupo era, que era muita música, poesia, marchinha de carnaval antiga, acho que tu não estava nesse encontro. Foi o encontro da Rede dentro da Mostra de Santos. Tu estava, né, Eve? E foi muito legal, eu fiquei, voltei: eu quero dar oficina, quero fazer uma coisa mais descontraída. Eu não sou diretora, não sou e nem quero ser, mas eu tenho umas vontades. Aí vim pra cá: vou peitar uma oficina sozinha. Daí a gente deu uma oficina aqui pra pessoas que nunca tinham feito teatro e montamos uma intervenção urbana. Uma intervençãozinha, assim, pegamos os figurinos aqui, antigos do grupo, pesquisei umas maquiagens, pegamos poesia também. Eu instiguei: qual a poesia que tu gostaria de recitar para as pessoas? E aí fizemos essa brincadeira. Isso foi em 2011. E aí antes disso a gente montou A Caravana, em 2009 a gente montou a Caravana.
Só uma questão histórica: foi Cartas de NáufragoCiranda dos Orixás e aí a gente montou a Caravana em 2009 e nisso, paralelo a oficinas. Capoeira, teatro e aí ano passado a gente deu oficina aqui. Depois a gente criou uma audição colaborativa, porque a gente nunca fez audição. Então eu propus uma audição colaborativa, então as pessoas que a gente pré-selecionasse teriam que participar das oficinas.
Giancarlo: Pra tirar uma febre...
Alessandra: Pra tirar uma febre. Não deu muito certo, mas valeu a tentativa, a experiência. Mas foi bem legal. A gente viu quanta gente é afim de fazer teatro, quantas pessoas são afim de fazer teatro de rua. Não sei, tá cult agora, né? Fazer teatro de rua.
Giancarlo: Tá, com certeza.
Alessandra: Ao mesmo tempo que é considerado chinelão, eu em parte acho que tá cult agora fazer teatro de rua. Um monte de gente dizendo que era super afim de fazer teatro de rua e trabalhar com o Povo da Rua! Olha só!
Giancarlo: Tá vendo?
Alessandra: Até pessoas que nos viram lá em Gravataí, né Eve? Disseram: Não, porque eu vi vocês lá... E aí...
Giancarlo: No Glênio Peres (centro de Porto Alegre) vocês já estão conhecidos.
Alessandra: É.
Giancarlo: Encostou um cara em mim, agora esses dias aí: ah, vocês são lá do pessoal da rua, do Povo da Rua? Daí eu: não, não, nós somos da Oigalê.
Alessandra: Ah, tá provando... várias vezes eu fui pra rua e diziam: vocês não são da Oigalê? Não. Não são do Ói Nóis? Não.
Giancarlo: Do Ói Nóis é mais comum. Vocês são do Ói Nóis? Não, não...
Evelise: A gente deu três oficinas: uma eu que dei, de teatro; uma a Ale deu de preparação corporal pra ator e a outra o Tiago Demétrio de trilha sonora pra teatro de rua. E aí a gente montou Os Dez Mandamentos
Giancarlo: Que é o quarto espetáculo nessa ocupação, digamos assim, do grupo.
Alessandra: Sim, o quarto.
Giancarlo: Se pegar o do Rogério, dá cinco já, é isso?
Alessandra: Cinco. Cinco espetáculos que foram criados aqui dentro. E mais oficina.
Evelise: E aí, um momento só de autocrítica nosso. Digo nosso enquanto ocupação. Eu gostaria de ver mais troca entre os grupos. Isso é uma coisa que eu sinto falta. Eu estava lembrando de quando eu trabalhei com o Paulinho no trabalho de graduação dele. E que daí eu ia lá pro espaço de vocês, ensaiava com ele. Inclusive a esposa dele, a Paola, trouxe uma turma que ela dava aula ali perto para ver o ensaio aberto. E o quanto foi legal ver a criançada: pô, que legal... Então isso é uma coisa que eu acho que eu gostaria de ver mais, sabe? Eu sei que às vezes a convivência é difícil, mas eu acho que tinha que transpassar isso, transcender e pensar em algo juntos. Acho que poderia ser muito legal, sabe?

Giancarlo: Falem um pouquinho do projeto. Pode falar o que não gosta, também, o que tá errado...
Alessandra: Que a Eve fala e eu lembro de coisas também. Na Ciranda dos Orixás, a Isabella Lacerda foi uma grande colaboradora. Ela fez o cenário pra nós. Um cenário lindo. Ela pintou, fez painéis enormes; e aí a troca com ela foi da gente fazer uma sessão da apresentação Ciranda dos Orixás pros alunos dela. Ela é professora da rede pública, acho que era de Literatura, algo do tipo, História, Literatura. E ela trouxe os alunos dela numa tarde de sexta-feira. E também foi essa sensação. Foi muito legal. Os estudantes aqui, sabe? E outra coisa que eu sempre digo é o Povo da Rua e eu, eu aprendi muito, principalmente com a Oigalê, sabe? Eu sempre digo: ai, o meu sonho um dia é ter um escritório que nem a Oigalê. Eu aprendi muito com os outros grupos, tanto com as qualidades, como com as falhas. Todos nós temos falhas. Aprendi muito, principalmente com a Oigalê, porque a gente tem uma proximidade, no sentido de fazer mesmo só teatro de rua, tipo os encontros da Rede. E também da gente tá sempre se puxando aqui, né. Se ligando: tal reunião, articula isso, faz aquilo. A gente se fala mais. Acho que também pelos horários de ensaio.
Giancarlo: É, a gente troca pouco. Eu concordo com isso também. E não só entre nós, como também externamente. A gente podia agregar mais, vai nos ajudar a fortalecer mais aqui também, né. É difícil, é isso, é complicado. A gente já tá assim: ah, não mas para aí, nessa cozinha não pode. A gente já tem um apego no espaço, eu acho. É difícil: ah, tá, vem dois, três grupos junto, nesse sentido. Tem uma readaptação nesse sentido, mas o grupo precisa estar aberto também pra isso, porque senão não rola.
Alessandra: O Povo da Rua tá sempre aberto, a Vera inclusive já usou aqui.
Giancarlo: Sim, sim. Não, mas eu digo assim: convidar outros grupos, por exemplo, de fora pra dividir o espaço junto, por exemplo, entendeu? Não acho inviável, só acho que o grupo tem que estar preparado pra isso, porque vai ter diferenças, ah, sei lá, se a geladeira não é pra ficar aberta e alguém esquece aberta, entende? Ou é a limpeza, que a gente precisa, na convivência, se reorganizar. Muito mais porque espaço é o que não falta, de certa forma.
Alessandra: É claro. Outro dia, como o Povo da Rua, né, que tá dividido em dois núcleos. O Marquinhos tá puxando um trabalho, para o qual ele convidou pessoas que já foram do grupo. E eu, desde que entrei não decidi dessa saga, puxo um outro núcleo, enfim. Outro dia, por exemplo, eles estavam ensaiando aqui no pátio, e nós lá embaixo. Estava um calorão incrível, mas é dentro dessa política, que a gente vinha já fazendo Os Dez Mandamentos, ensaiar lá debaixo das árvores.
Giancarlo: Eu queria que vocês falassem do estudo que foi feito pelo escritório da UFRGS. Se vocês acham se é viável, se é só um delírio nosso, se isso realmente tem fundamento, se pode ser um caminho. Queria ouvir isso, registrar, ter isso documentado de certa forma. Ou explicar um pouco de como foi isso.
Alessandra:  Quando ficou pronto o projeto, nossa! Deu vontade de chorar. É tudo o que a gente sonha. É tudo o que a gente vinha falando nessas reuniões em dez anos de reuniões. E conversando com o governo, e secretários e secretárias de cultura. A gente sabe que a Secretaria de Cultura é a secretaria mais frágil da esfera pública e política. Eu acho e acredito. Eu acho não, eu acredito que é viável. O Marcelo que está dentro do governo ele disse: é viável. Depois que a ente conseguir isso a gente vai pro próxima passo, que é a emenda parlamentar. E eu acho que somos, apesar da gente não ter essa troca que a Eve reclama, eu acho que somos cinco grupos que, no momento que a gente estiver, a gente vai se fortalecer muito mais e a gente tem apoio do Brasil inteiro. E isso acontecendo vai ser um dos maiores centros culturais do país. Porque não tem como comparar, são cinco grupos.
Giancarlo: Com possibilidade de mais duas salas.
Alessandra: De mais duas salas. Então o projeto é: aqui, como a gente falou... Uma coisa que eu queria falar também, que é histórico. Os dois prédios aqui do cinco e do seis, ele mais serviu de enclausuramento de presos políticos nos anos 60. Isso o Marasca teve uma conversa com um coronel de época da ditadura, que ele deu uma carona pro Marasca não sei de onde, e ele contou que trouxe muito preso político pra esses dois prédios aqui.
Giancarlo: O cinco e o seis?
Alessandra: O cinco e o seis. Inclusive o seis, pode ver, ele é diferente. Ele tem umas gradezinhas. Porque os caras tentavam fugir. E pode ver, é basculante as janelas, é diferente dessa aqui. E eles tentavam fugir e ficavam presos pela cabeça. E isso aconteceu várias vezes. Então muito preso político ficou morto, ficou enterrado aqui. Abriam um buraco aqui e enterravam o cara. Então esse espaço aqui serviu mais de enclausuramento de preso político do que de pessoas com transtorno mental.
E aí voltando pro projeto, a ideia do projeto é que cada grupo projetou e sonhou e organizou. Eu propus também em várias reuniões: o que a gente quer do nosso espaço? Aqui, de ficar o salão, de manter a cozinha aqui, mas aumentar a cozinha e botar um banheiro lá mais pra trás. Usar aquele banheiro que tá desativado, aquele banheiro lá. E em cima ser o escritório, na parte de cima. Aí eu vou realizar meu sonho de ter um escritório. Porque o escritório do Povo da Rua é lá em casa. E aí a minha vida é o Povo da Rua.
Giancarlo: Tu vai ver quando sair da tua casa a diferença que vai dar.
Alessandra: Acho que aí eu vou ter minha vida própria, minha vida de volta. Então a ideia é ter os espaços aqui, camarim, banheiro, enfim, toda uma reorganização. Oficina, manter a oficina. Eu acho que também tem o estúdio de música o nosso projeto. E uma escada caracol que a gente sobre direto. Olha só! É muita chiqueza, né? Ter uma escada caracol igual a de vocês lá.
Giancarlo: A nossa não é caracol.
Alessandra: A de vocês lá do escritório.
Giancarlo: Ah, sim.
Alessandra: Sim! Te liga, magrão!
Giancarlo: Ah, tá. Não, pensei que tu estava falando a daqui.
Alessandra: Não, a escada caracol que eu vou ter acesso ao escritório do Povo da Rua.
Giancarlo: A do terraço.
Alessandra: E aqui em cima ter um salão de reuniões, cada grupo ter o seu escritório aqui em cima. E ter um espaço de apresentações pra todos os grupos. Tanto para os grupos que ocupam como grupos da cidade e grupos de fora. E ter uma outra sala pra ser rotativo, pra outros grupos também ocuparem. E também ter uma salinha, se separou uma salinha pra colocar o cenário dos grupos que estão viajando, ou do grupo que tá nessa rotatividade.
Giancarlo: Se apresentando.
Alessandra: Se apresentando. Pra deixar seu cenário, seu figurino.
Giancarlo: Ter um espaço de apoio.
Alessandra: É. Tem um espaço de apoio e camarim também pro grupo que vier. Enfim, seria um centro cultural diferente de qualquer outro lugar.
Giancarlo: Pensado pros grupos.
Alessandra: Pensado pros grupos e pensando também no espaço como tombado pelo patrimônio histórico. O pátio se manteria assim com um teto de vidro que também se abriria. Teria, respeitando o PPCI, teria um elevador, um prédio colado no prédio pra não...
Giancarlo: Mexer na estrutura.
Alessandra: Mexer na estrutura. Um prédio colado no qual circularia um elevador, tanto pra cenário quanto pra pessoas, cadeirantes. E aí a entrada, do São Pedro, desse centro cultural que vai acontecer, seria por esse lado aqui. Evitaria a entrada do Hospital. Então teria uma entrada aqui, e aqui onde é a manutenção seria o estacionamento para as pessoas que viessem assistir os espetáculos do espaço. Tem o estacionamento e já o elevador pra subir no andar de cima.
Giancarlo: Caso tenha um cadeirante, uma pessoa com dificuldade.
Alessandra: É. A gente estudou que não pode mudar a estrutura aqui da frente, não teria como. Isso foi, até essa parte da entrada, de como acomodar cadeirantes foi o maior nó do projeto. Então, como é tombado pelo patrimônio histórico, não pode botar rampa, não pode botar elevador... Por isso que se pensou nesse prédio anexo ao lado do prédio para o elevador. Foram estudadas todas as possibilidades, só se chegou nessa. Então teria a opção de apresentar um espetáculo de rua aqui no pátio. Também se programou uma praça aqui na frente, que também daria pra se apresentar ali. Enfim, é um sonho o projeto.
Giancarlo: Quer falar alguma coisa, Eve?
Evelise: Só reiterar que é muito legal ter sido feito, o estudo ter sido feito pelos alunos de uma universidade federal pública, pra artistas, nós, esses cinco grupos que estão ocupando um espaço público. O que eu acho mais legal de tudo isso é como foi feito o estudo. Porque podia ter se juntado uma grana e ter pago alguém, mas não. Se buscou um serviço público. Então eu só gostaria de reiterar isso, o quanto pra mim isso foi coerente, e todo o processo, que eu acompanhei um pouco, esse processo de reuniões e tal. Se buscou uma coerência.
Giancarlo: Eu queria que vocês falassem exatamente sobre isso. Como é que se dá essa relação, como é que é essa convivência, as dificuldades, aonde vocês acham que a gente pode evoluir, melhorar. Ou não, já tá bom. Como é que isso se dá, essa organização. Essa coisa que tu falou de dez anos de reuniões.
Alessandra: Eu acho que foi assim, hoje em dia a gente tem mais intimidade e se conhece. Porque a gente já brigou muito. Eu, o Sabão, a Desirée, o Hamilton, o Jessé... por um tempo foi o Sílvio e a Ravena, não tem como se negar a participação deles. Foi muito legal, muito participativos e propositivos, e problema é deles.
Giancarlo: Cada um com seus problemas.
Alessandra: E então era super legal quando eles vinham. Eles propunham, faziam coisas. Eu acho que evoluiu bastante. Não se quebra mais o pau. A gente já brigou muito, muito.  Eu e o Hamilton, sempre era alguém em crise, sabe? Hoje em dia a coisa tá mais, tá maduro. Acho que todos nós crescemos um pouco, amadurecemos tanto a ideia do espaço, como a ideia de cinco grupos, como a ideia de cinco grupos bem diferentes, embora as semelhanças. E, claro, a gente poderia evoluir muito mais, né? Eu já propus até projeto com a Oigalê, enfim, a gente não deu continuidade por várias questões. Porque a correria, também não era aquele projeto que a gente tanto sonha, né? Seria aquele dos céus.
Giancarlo: Fazer lá no interior, né?
Alessandra: Meio chatinho. Não é uma coisa que a gente se identifica. E seria também pra despir um santo pra vestir outro. Então eu acredito que a gente ainda vai evoluir mais. Eu acho que a tendência é essa. Outro dia eu conversei muito com a Desirée, foi muito legal. Aquela coisa de conversa de amiga mesmo. Ela veio me dar um retorno, que achou o quanto o Povo da Rua cresceu, evoluiu no sentido dela ver a minha garra de estar sempre aqui, continuando e fazendo as minhas coisas pelo São Pedro. Ela reconheceu a minha parte nesse processo todo. Assim como eu reconheço a parte dela, reconheço a parte do Hamilton, da Oigalê, o Sabão... cada um nas suas medidas e proporções. Eu acho que também, eu concordo com a Eve. A gente deveria trocar mais, a gente podia fazer um churrasco lá na sede da Oigalê.
Giancarlo: A gente tem feito, de vez em quando...
Alessandra: Não convidam os amigos pobres.
Giancarlo: Convidamos, sim. Não seja faladora.
Alessandra: Eu acho que a gente pode fazer mais coisas. A gente não faz porque tem, eu acho, tem uma coisa que é concreta, limitadora: o espaço aqui. Acho que no momento que a gente tiver esse espaço, a gente vai poder evoluir.
Giancarlo: A segurança, né?
Alessandra: A segurança, né, do comodato. Acho que a gente vai fazer coisas aqui, né? Eu estava conversando com o Rizoli, os próprios projetos do ponto de cultura. Se os grupos, se dois grupos aqui entrassem com o projeto, a gente ganhava certo. Mas a gente não tem comodato, né.
Giancarlo: Não tem comodato, e tem que ter um percentual de contrapartida, né? Que quem tem um ponto de cultura tem que dar. Tem que buscar, acho que 20%, 40%...
Alessandra: 20%.
Giancarlo: Então tem que se pensar nisso. Não que seja impossível, mas...
Alessandra: E outra coisa que eu acho também, a Oigalê também pensa nisso. Sempre quando a gente aprova um projeto pro grupo a gente pensa em atividades aqui dentro.
Giancarlo: A gente basicamente pensa aqui, né.
Alessandra: Aqui dentro. E espetáculos, apresentações pros internos e funcionários. Isso vem acontecendo ao longo dos anos que a gente tá aqui. Além do retorno de interesse que a gente já dá no sentido de estar fazendo arte aqui, a gente reforça esse retorno fazendo apresentações. Então tem essa troca que eu acho que isso que nos garante aqui. E a relação com os grupos aqui, nossa. Eu só tenho a agradecer, porque eu não quero ficar lembrando só da parte ruim, né. Tem muita coisa legal. Tem muitas reuniões que a gente sai dando risada, se diverte, muito. Então, eu aprendi muito. Aprendi e sigo aprendendo muito com os outros grupos. E trago essa experiência pra cá e acho que é bem importante.